Lupércio no céu – por Carla Ceres

Lupércio no céu – por Carla Ceres

Lupercio

Lupércio chegou ao Céu, com a alma coberta de migalhas. Repetiu, pro assistente de São Pedro, a mesma história que contara no Guichê de Triagem Infernal:

— Eu estava a serviço, no centro da cidade. De repente, desmaiei. Usaram uma arma de choque para tentar me reanimar. Acontece que eu uso marca-passo e o senhor sabe que um choque desses é fatal pra quem usa marca-passo. Por isso estou aqui.
— Certamente, o Senhor deve saber, porque Ele é onisciente — respondeu o anjo, tomando nota — mas eu ainda não entendi bem por que o senhor está aqui. Parece que seu lugar seria no Inferno.
— Eu já estive lá — respondeu Lupércio. — Eles riram de mim. Disseram que eu morri por causa da boa intenção das pessoas e que o Inferno estava cheio de boas intenções. Me mandaram pra cá.
— Sei. Eles gostam de fazer esse tipo de brincadeira, dar falsas esperanças — respondeu o anjo, passando o dedo no ombro da alma de Lupércio. — Que poeira é essa em você?
— Ah, é migalha de biscoito de polvilho. Eu desmaiei em cima de uma banca onde vendiam uns biscoitos de polvilho caros pra caramba. As migalhas vieram pro Céu comigo.
— É mesmo! — respondeu o anjo, lambendo os dedos e sorrindo. — E estão ótimas. Muito obrigado por trazê-las! Raramente saboreamos migalhas de mortalidade por aqui.
— Minha avó dizia que, da vida, nada se leva, mas eu trouxe as migalhas. Estranho isso, não é?
— Não tem nada de estranho. É pura sorte de principiante. Esta é a primeira vez que eu venho pra portaria e já tenho a oportunidade de saborear um pedacinho do seu mundo antes de mandar você de volta.
— Me mandar de volta!? Mas eu morri.
— Mas vai desmorrer. Tá escrito aqui. Acabei de ver. Deus resolveu fazer um milagrinho básico pra ajudar uns médicos cubanos que acabaram de chegar ao Brasil. Você pode ir embora, mas, por favor, deixe as migalhas comigo.
Lupércio “desmorreu” no hospital. Suas primeiras palavras para a médica que o examinava foram:

— Buenos dias, doutora! Como vai o seu país? E o Fidel?
— Bom dia, seu Lupércio! Eu sou espanhola — respondeu a médica, rindo.
— Chiu! Fala baixo, senão me chamam de volta — sussurrou Lupércio, antes de adormecer. Quando acordou, não se lembrava mais da conversa nem da voltinha pelo além.

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carlicatura Carla Ceres

 

 

 

 

 

Carla Ceres é escritora.

 

22 thoughts on “Lupércio no céu – por Carla Ceres

  1. Carlinha e seu senso de humor – nova faceta! Oba! Assim vale a pena morrer… Com todas essas regalias… candidato-me… Se há boas intenções até no inferno, nosso amigo Lupércio fez um tour na “Empresa Divina de Turismo”. HAHAHAHAHAHAHA…
    Beijo. Célia.

  2. Olá prezada Carla, e que tudo esteja bem!

    Perfeita como sempre nos escritos que você compartilha. Parabéns e obrigado por mais este!
    Você vai, mas, as migalhas ficam. Muito boa essa. É o que eu sempre digo prezada, você sempre falando da realidade com intenso humor. Até o secretário do paraíso se corrompeu a um dos prazeres dos mortais!
    Eu espero um dia escrever da maneira que você escreve, é deveras admirável!
    E grato por tuas visitas e amizade eu desejo que seja sempre deveras iluminado e intenso o teu viver, abraços e até mais!

  3. hahahahaha muito bom – como sempre!

    Esse senhor, eu já conhecia de outras histórias hein. Ele era saramandista ou bolebolense, o bicho desmorreu comunista e com boa memória recente! =)

  4. Prezada Carla, bom dia, texto ótimo. Elevado teor de ironia. Humor fino, em alta conta. Adorei o neologismo “Desmorrer”, bem consoante ao “Desterro”. Junte a outros contos e façamos um livro. Só teu. O Mundo mereçe!! Parabéns!!! Abs.
    Ralph Peter

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