Andei retomando algumas lembranças de fatos que remontam aos tempos da infância. Interessante que a imagem do ex-presidente Lula sempre permeia e atravessa as memórias mais intensas, significativas e singelas das experiências infantis. Deixe-me explicar-lhes melhor.
Ainda hoje, estive reconstruindo a encantadora década de 80, período de redemocratização da sociedade brasileira, com toda diversidade e alteridade de pensamento e representações. Naquela época, ainda morando com meus pais num tradicional bairro da cidade de São Paulo, a memorável Vila Mariana, berço de uma tradicional classe média paulistana, a família tinha por hábito almoçar aos domingos em uma antiga cantina, muito próximo à Estação Santa Cruz do Metrô.
Além da saborosa comida, do variado cardápio, o que mais causava encantamento e alegria era a incansável e constante presença do ex-presidente Lula no recinto, abrilhantando o espaço com sua imponente e curiosa figura. Pertenciam-lhe, como de costume, uma avantajada barba e a boina, velha companheira de luta, cobrindo-lhe a ampla cabeleira – ainda a tinha naquele período. Penso que o diretório do PT ficava na Rua Borges Lagoa a poucos metros da cantina. Ao término das reuniões do partido, os militantes dirigiam-se ao restaurante, consagrando as reuniões e os encontros com a convencional e amiga refeição coletiva.
Não é difícil imaginar que Lula encabeçava o grupo. Geralmente, era o primeiro a adentrar o recinto, imponente, seguro, com vantajosa sobriedade e distinção. Escolhia as mesmas mesas, juntando-as para acomodar um coletivo de aproximadamente vinte companheiros e companheiras. Comumente, acomodava-se na ponta, liderando, ocupando o espaço que sempre lhe pertenceu naturalmente e por direito. Interessante que, muito conhecido em razão do movimento sindical e sua identificação com a ideologia de esquerda – velha e aguerrida inimiga do pensamento tacanho e limitado das classes médias urbanas –, aquele militante arrancava curiosidade, respeito e certa insegurança. Todos os clientes, assim como os funcionários, silenciavam com sua entrada, observando, fitando-o – ora com sutil curiosidade, ora com a adoração esperada, por vezes com a odiosa resistência e aversão das elites diante da representação impar de Lula no campo democrático da esquerda e do embate ideológico, conquistando até os mais eloquentes intelectuais para a causa popular.
Meus pais, já ensaiando os próximos votos em candidatos petistas, não continham certa euforia sempre que Lula se acomodava na mesma cadeira, na mesma ponta de mesa, alavancando sua densa comitiva. Eu, sempre curiosa com aquele homem barbudo, circunstancialmente sorridente, o cabelo volumoso, o ar respeitoso do velho operário, perguntava ao pai: por que o nome de Lula, papai? O pai nunca soube responder com segurança a origem do apelido. Inquieta e com uma atenção incansável, decidi questionar ao próprio líder. Destemidamente, dirigi-me, numa certa ocasião, ao grupo militante, interrompi a conversa e indaguei ao Lula se o nome tinha origem marinha. Sua única atitude foi, de forma incisiva, dirigir o olhar aos meus pais, acenando com a cabeça, ao lhes pedir uma espécie de autorização, consentimento. Então, acarinhou-me os cabelos e com um gesto terno e angelical apenas extravasou um lindo sorriso, abraçando-me. Não nego que ainda carrego a eterna sensação das minhas mãos tocando aquela barba, os fios escorregando entre os dedos: eram incrivelmente densos!
Aquele único e delicioso momento cotidiano, apesar da aparente banalidade, tocou o imaginário e indicou a construção íntima do grande mito que reconta minha história, acompanha-me pela vida mais adulta e madura. Ainda infanta, não imaginava que aquele homem tomaria os meus votos, marcaria profundamente o exercício da cidadania, aguçaria o espirito crítico, lançar-me-ia nas discussões mais apaixonadas em defesa dos direitos e de uma sociedade mais equânime. Torna-se deveras doloroso, considerando seu significado para cada um de nós e para história política do país, encontrá-lo encarcerado, impossibilitado de disputar as eleições, alijado de seus direitos fundamentais.
Oportuno ressaltar que, apesar da desconstrução midiática de sua imagem, o Lula da infância está alojado e ternamente acomodado no pensamento, nas lembranças doces e infinitas. Nada é capaz de retirá-lo do coração, do que pertence ao conteúdo impenetrável de minha intimidade e à minha consciência. E todos nós sabemos que o coração do homem é terra que ninguém pisa!
Maria Teresa Silva Martins de Carvalho é assistente social e autora do livro “Paixão de Cristo, paixão de Piracicaba”.
Então, acarinhou-me os cabelos e com um gesto terno e angelical apenas extravasou um lindo sorriso, abraçando-me. Não nego que ainda carrego a eterna sensação das minhas mãos tocando aquela barba, os fios escorregando entre os dedos: eram incrivelmente densos!Pois é amiga, e tudo isso virou um mito ou melhor uma “IDeia” Parabens pela cronica. bjao
Belo texto!