Um silêncio de torturas
E gritos de maldição
Um silêncio de fraturas
A se arrastarem no chão.
E o operário ouviu a voz
De todos os seus irmãos
Os seus irmãos que morreram
Por outros que viverão.
Uma esperança sincera
Cresceu no seu coração
E dentro da tarde mansa
Agigantou-se a razão
De um homem pobre e esquecido
Razão porém que fizera
Em operário construído
O operário em construção.
Vinícius de Moraes – “O Operário em Construção”.
Talvez somente por meio de metáforas seja permitido se alcançar e dizer algo sobre as belezas que a vida pode ser e também sobre as mazelas que se insurgem contra a mesma vida. Nietzsche, o filósofo mais visceral, utilizava-se sempre de profundas metáforas para abordar a essencialidade existencial. Paul Ricouer, pensador mais contemporâneo, escreveu sobre metáforas vivas. A imagem metafórica da grotesca besta apocalíptica talvez tenha muito significado, em um contexto de muitas derrotas, mas que pode abrir passagem e acenar para um outro porvir.
Fukuyama e os demais coveiros neoliberais, ávidos a sepultar qualquer esperança, articulam ridículos Consensos de Washington e se apresam em decretar o fim da história, suplantada pela lógica do mercado. Em uma clara perspectiva apocalíptica, justamente no ponto em que a besta fera imprime sua marca e dissemina opressão, destruição e morte. É interessante frisar que esse dragão bestial, em um primeiro momento, seduz e alicia, arregimentando uma multidão de seguidores. Imagem infernal que remete àquele juiz que, inebriado em sua demência e vaidosa estupidez, sob os auspícios talvez da CIA e de outros interesses alheios à noção de justiça e de patriotismo cívico, quer também decretar o ocaso do grande líder, do operário em construção, profetizado na poesia de Vinícius de Moraes.
Antes de mais é preciso lembrar que a história é dialética e a luta de classes é dura, violenta, cheia de reveses. É preciso dizer ainda que as forças hegemônicas não guardam nenhum compromisso com a visão de nobreza, nem de ética, nem de hombridade, muito menos com a perspectiva de lealdade. O complô, a detratação, a trama, a traição são estratégias, subterfúgios corriqueiras em suas ações. Em clara deturpação das Lições do Príncipe, de Maquiavel, quando a finalidade é a manutenção do poder, todos os meios se tornam lícitos, até mesmo o colapso prematuro e não menos estarrecedor de uma infante democracia.
A questão que permanece sem solução, a desnudar todo discurso ideológico neoliberal, diz respeito ao lugar dos pobres. Onde dormirão os pobres? Já indagava o teólogo Gustavo Gutierrez, confrontando as teses neoliberais. Qual o quinhão que cabe aos esquecidos da terra, nessa perversa quimera do livre mercado? O desmonte da frágil democracia brasileira foi orquestrado e implementado em nome de que projeto de país? No Brasil somos 200 milhões de cidadãos. Qual o projeto político e econômico que contempla a todos? Esse é o ponto.
Voltando à metáfora do apocalipse, o fundamental é que a história não termina com a vitória da besta fera. Talvez os comensais da morte, com a boçalidade neoliberal – que não se sustenta diante da realidade da vida –, não conheçam bem o enredo da história. No final, a grande Prostituta, desmascarada no apocalipse, que agora aparece travestida no sistema de justiça, a vilipendiar e subverter todo o direito, enfrenta o revés de uma Justiça que se impõe, derrotando as forças das engrenagens de opressão, exploração e morte. É uma Justiça que nasce das entranhas do povo, legitimada pela vontade geral rousseauniana e se impõe de maneira transformadora, revindicando e instaurando um outro poder, a inaugurar o tempo da democracia e do direito.
Não há fim da história plausível, aceitável enquanto aqueles que foram banidos, esquecidos, silenciados, maltratados não experienciarem plenamente a libertação, compondo um profundo movimento de transformação da própria história. Novamente as metáforas se fazem vivas. O gigante operário em construção, em um gesto cheio de dignidade – voltando a uma origem fundamental, sob o abrigo do sindicato, lugar simbólico que remete a uma tradição histórica de luta e resistência, e amparado por uma multidão agora incontável – ergue sua carismática e voz e faz resoar um contundente não! Ora, o dinamismo para se forjar um outro desfecho para a história, sem desperdiçar a ocasião – com atenção coerente às lições de Maquiavel –, encontra-se na força arrebatadora do povo, que é capaz de sobrepujar o dragão bestial do neoliberalismo e de seus juizinhos asseclas – os quais, ao perderem o véu ideológico, não conseguirão mais aliciar nem convencer mais ninguém. Apenas com o povo e a seu lado é que se poderá colocar por terra toda essa legalidade radicalmente inócua e injusta que ora nos tenta dominar.
Adelino Francisco de Oliveira é filósofo, doutor pela Universidade Católica de Braga -Potugal – e professor no Instituto Federal campus Piracicaba.