Quem, como eu, lê, escreve e procura incentivar a inserção das letras na vida quotidiana, no Brasil, não tem como deixar de pensar e se posicionar a respeito de ocorrências, cada dia mais frequentes no país, relacionadas à censura de livros. Objetos estes que, de fato, por aqui (e talvez em lugar algum, hoje), nunca foram objeto de muita devoção.
Todo dia se pode ouvir ou ler alguém defendendo a liberdade de expressão, o direito de cada um a dizer, escrever, publicar, cantar, tocar, filmar, encenar, pintar, desenhar, esculpir, dançar, bordar, tricotar, costurar, cozinhar o que bem entender, trazendo ao mundo, para quem quiser apreciar ou criticar, o que lhe vai na mente e no coração, inclusive meras opiniões sobre qualquer coisa. Isso hoje em dia, no século XXI. Mas nem sempre foi assim. Tempos plúmbeos pontilham a História, caracterizando-se exatamente por censura às manifestações individuais consideradas contrárias aos desígnios, objetivos, interesses e vontades de poderosos que se arvoram a defensores da vida vivida tal como convém a todos, escolhidos ou não para o cumprimento este controverso papel.
Desde o advento das redes sociais como parte do quotidiano, todavia, nota-se que esta mesma liberdade de expressão é portadora, por um lado, do já conhecido benefício da convivência pacífica entre os diferentes, permitindo que cada um se expresse a seu modo e também que os outros reajam da sua maneira, estabelecendo-se um diálogo geralmente construtivo; e, por outro lado, portadora da possibilidade de manipulações e de disseminação de mentiras, conducentes a situações destrutivas e lamentáveis.
Surge, então, novamente, sob novas possibilidades tecnológicas, o dilema: censurar ou não censurar? E se for para censurar, como fazê-lo com eficácia?Se já nos tempos dos livros, jornais e revistas, em que a possibilidade de “viralizar” poderia ser considerada ridiculamente pequena, em comparação com as possibilidades da rede mundial de computadores, era difícil impedir a livre expressão por meio de palavras e imagens fixas, que dizer dessa possibilidade diante das tecnologias da informação e da comunicação da atualidade?
É curioso, para não dizer risível, o fato de vez por outra eclodirem, por aí, não só em grotões interioranos mas também em cumes metropolitanos, proibições a publicações no formato de livros físicos, por conterem trechos considerados lesivos à “moral e aos bons costumes” ou por atentarem contra o respeito às minorias ou aos diferentes que compõem a ampla ecologia de seres humanos. O que esperam os censores? Que o dito seja desdito? Que o escrito desapareça? A cada exemplar de livro censurado, milhares ressurgirão nos espaços virtuais incontroláveis. Não é mais possível “empastelar” a editora ou a gráfica e prender, espancar ou matar o proprietário: ela é virtual e mutante.
Dentre os moralistas extremados, um tópico eternamente merecedor de censura é aquele relacionado á sexualidade. Virgem Maria! Eles próprios solitários consumidores de vídeos pornográficos ampla e gratuitamente disponíveis na internet, tão explícitos como nunca antes puderam ser, não percebem que é atitude vã, desperdício de energia, proibir ou desaconselhar livros que contenham cenas ou alusões ao natural e prazeroso relacionamento sexual (do modo que cada um achar melhor)? Hoje em dia, o elaborado exercício de imaginar cenas picantes a partir de textos é uma raridade, acanhada diante das inúmeras oportunidades de ir direto à imagem, na tela, fixa (foto) ou em movimento (vídeo), passando de uma a outra sem restrições ou limites, de modo a afetar drasticamente a libido, antigamente saciada com mais moderação e, possivelmente, maior intensidade e cumplicidade.
Já entre os guardiões extremados do “politicamente correto”, a censura é acolhida como instrumento de combate às discriminações dos mais variados tipos: gênero, raça, religião etc. Chegam até mesmo ao ponto de alterar obras antigas a fim de depurar os textos de das passagens que consideram abusivas, como se no momento da concepção aquilo fosse também considerado abuso e desrespeito. Perdem com isso a oportunidade de usar a literatura como expressão de uma época, passível de inteligente utilização para revelar preconceitos que, no correr da própria História, foram sendo questionados e até superados. Adulterar uma obra para adequá-la a um momento histórico que não lhe corresponde é, acima de tudo, burrice. Esta, sim, deveria ser censurada e nunca poderá sê-lo por meio de lei. Nasceria morta uma norma legal que estabelecesse: “Art. 1º.: Fica proibida a prática da burrice em todo o território nacional.”
Entre a censura e a liberdade de expressão há um amplo terreno, maior que aquele ocupado pelos extremos. E ao lado dos autoritários métodos disponíveis para impedir acesso aos diferentes modos de pensar e sentir, presentes em obras antigas ou atuais, encontram-se as formas democráticas (sempre ambíguas, por natureza) de motivar este acesso ou desencorajá-lo. Encontrar o ponto sobre o qual agir e a maneira de sobre ele atuar, sem lançar mão de autoritarismo, mas também sem dar vento ao moinho da desagregação derivada da total libertinagem, é um desafio contemporâneo.
A censura de livros, aceita ou apoiada pelos tolinhos que deles sentem nojo ou neles veem encorajamento a atitudes politicamente incorretas, não deve ser motivo para contra-argumento ou de riso ou escárnio, mas de pena, embora produza um incômodo barulho, que geralmente serve para chamar a atenção sobre quem a pratica (sem de fato a acharem necessária, possível ou eficaz), possibilitando a obtenção de vantagens ideológicas, políticas e partidárias sem recorrer a trabalhosos debates.
Valdemir Pires é economista e escritor.