Maria Cláudia – oito anos,negra – e Cláudia Maria – branca,com a mesma idade – estudam juntas, estão no início do aprendizado escolar. Depois de uma aula sobre História do Brasil, enquanto suas amiguinhas saíram para brincar, as duas sentaram embaixo de uma árvore e começaram a conversar sobre o que ouviram na aula (lembrando que a professora apresentou o Brasil para as crianças como sendo um país igual para todos, que todas as pessoas têm as mesmas oportunidades e que as leis são iguais para todos – os mesmos pensamentos que povoam o inconsciente coletivo da maioria dos brasileiros).
Só não disse que falta justiça, que falta reparação, que falta inserção social e que falta partilha do poder para os negros, entre outras coisas. E complementou dizendo que no Brasil não existe racismo, que nós vivemos uma democracia racial.
Para dar mais força ao seu discurso, argumentou ainda que na sua casa a empregada é negra. E que até senta-se à mesa junto com ela e os seus familiares para fazer as refeições. Disse ainda que a sua filha também brinca com a filha dela e que, às vezes, as duas, mãe e filha, dormem no quartinho no fundo da casa.
– Na minha casa eu ouvi uma história diferente, disse Cláudia Maria. Meus pais me contaram que o mundo ocidental construiu o seu relacionamento com a população africana com base no preconceito de todo tipo. Por exemplo, o fato de a África ser um continente naturalmente tropical, não seria viável para a vida civilizada e nem espiritual. Por conta do calor, era associada ao inferno, além da sensualidade, repudiada pelo pensamento cristão. Dai o cristianismo ter criado expressões como o fogo ou o calor dos infernos. Além disso, falam que antigamente a África era povoada por homens-macacos, ogros canibais, mulheres-pássaros, gente sem nariz e sem língua e de dedos virados. A África mãe de monstros!
Já Maria Cláudia falou que os pais dela lhe contaram a seguinte história:
– Olofin foi o Senhor que criou tudo: o bem e o mal; o bonito e o feio; o claro e o escuro; o grande e o pequeno, o cheio e o vazio; o alto e o baixo e a Mentira e a Verdade. A Verdade é forte, marcante, bela e luminosa. A Mentira é fraca, feia e opaca. Por conta disso, deu a ela uma foice para se defender. A Mentira tinha inveja da Verdade e um dia elas brigaram e, num golpe certeiro, a Mentira degolou a Verdade. A Verdade, vendo-se sem cabeça, começou a procurá-la, tateando tudo ao redor. Quando apalpara um crânio que pensou ser o seu, arrancou-o de onde estava e o colocou sobre o seu pescoço. Só que era a cabeça da Mentira. Desde então, a verdade anda por aí enganando muita gente.
13 de Maio, a Abolição
Sobre esse dia,Cláudia Maria falou:
– Os meus pais me disseram ainda que foi no dia 13 de Maio de 1888 que a princesa Imperial Regente, Isabel,em nome de imperador D. Pedro II, fez saber a todos os súditos do Império que a Assembléia Geral decretou e ela sancionou a seguinte lei: Art. 1.º: É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil.Art. 2.º : Revogam-se as disposições em contrário.
Faltou dizer no decreto que foram quase 400 anos de escravidão, faltou dizer que havia pressão nos quatro cantos do mundo pra que isso ocorresse e que o Brasil foi o último país a abolir a escravidão. Faltou dizer que a partir daí,para fugir do seu passado, o país abriria as portas para os imigrantes europeus.
Maria Cláudia disse que seus pais também lhe falaram sobre a Abolição:
– Os negros devem ter pensado naquele dia: “estamos livres e, ao mesmo tempo, com fome – estamos livres para o frio e para as chuvas, estamos livres e sem lugar pra ficar, sem pão e sem terra para trabalhar.” Disseram ainda que esse dia não tem nada de liberdade, mas só reafirma a injustiça cometida contra seres humanos. Pessoas que foram desumanizadas, exploradas, coisificadas, bestializadas e abandonadas à espera da morte. Os negros saíram da senzala e foram para a periferia, onde estão até hoje.
Fala coração.
Aí, tocou a campainha, acabou o intervalo e as duas caminhavam ainda conversando para voltar à sala de aula, quando Cláudia Maria falou pra sua amiga:
– Os brancos são muito diferentes dos negros, mas depende do branco e depende do negro. Na minha caixa de lápis de cor, o branco não serve para nada. Só o preto é que serve para desenhar. Por isso, os dois são muito diferentes.
Maria Cláudia deu seqüência à conversa e também falou:
– Tem o giz e tem o carvão. Eles são iguais. Os dois servem para desenhar. Com o giz, a gente desenha na lousa. Com o carvão, a gente desenha o bigode na cara do Paulinho para a festa de São João.
E prosseguiu:
A noite é preta, mas o dia não é branco, o dia é azul. Então, o preto da noite é só da noite. Não é igual nem diferente de nada.
– O leite é branco e o café é preto. De café eu não gosto. Também não gosto de leite, quando ele está branco. Prefiro misturar com chocolate. E ai ele fica marrom. Marrom como você, falou Cláudia Maria. Outro dia me disseram que você é negra e eu disse que você é marrom. Eu estava com raiva de você porque você tirou uma nota melhor do que eu na prova de Matemática. Mas eu não queria ser diferente de você e, por isso, estudei bastante e na prova seguinte ficamos iguais.
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Niva Miguel é jornalista, professor e autor do livro “Além da Notícia.”
(fontes fornecidas pelo autor: Memória D´África, a redação de Maria Claudia
e Rev. José do Carmo da Silva).