Segundo o dicionário Oxford de linguística, uma língua é considerada morta quando não existe nenhum falante que a tenha aprendido como sua primeira língua ou língua materna. Esta denominação nos faz imaginar que, se ela morreu, ninguém mais na face da Terra fale aquela língua. E não é o que ocorre com o latim! Possivelmente, não exista uma criança que aprenda latim como sua primeira língua, mas está muito longe de ser um fantasma – apesar de assombrar muitos estudantes de latim.
Sorrateiramente, esta língua morta está muito viva no nosso dia a dia. Em Brasília, por exemplo, todos os políticos usam e sabem muito bem o significado de um habeas corpus. Devido ao surto de dengue, que atualmente assola nosso país, a população sabe que o vilão é o tal do Aedes aegypti. Os mais de um bilhão de católicos do mundo sempre aguardam ansiosos para ver sair da famosa chaminé do Vaticano a fumaça branca que significa habemus papam! Muitos outros exemplos podem ser dados além da área do direito, da ciência e da religião. O latim está presente nas artes, literatura e medicina. Mas de onde vem o finado, afinal?
Segundo estudiosos, o latim surgiu na região italiana do Lazio, onde hoje está a cidade de Roma. Espalhou-se, como língua “viva”, por todo o Império Romano (27 a.C.- 395 d.C), cuja maior extensão em 117 d.C. abrangia África, Ásia e Europa, 49 países atuais. Este fabuloso e poderoso império colapsou, mas a língua que falava sobreviveu e gerou filhas, netas e bisnetas. Assim, temos o nascimento do italiano, sardenho, francês, espanhol, romeno e do nosso apaixonante português. Por razões óbvias, o italiano foi a filha que se tornou mais parecida com a mãe. Entretanto, não somente as filhas herdaram os “genes” do latim, mas também outras línguas como as germânicas! Sessenta a 70% das palavras da língua inglesa, por exemplo, são derivadas do latim!
Além de toda essa prole de línguas que se tornaram adultas e independentes, poucos sabem, mas o latim permanece como idioma oficial do Estado do Vaticano. Apesar de diferenças na pronúncia com o latim clássico, o chamado latim eclesiástico continua sendo usado para comunicação não somente escrita como verbal. Então, por que declarar óbito a uma língua que ainda mostra sinais de atividade cerebral? ? Será que não valeria a pena ressuscitá-la? Quais as vantagens em se aprender latim nos dias de hoje?
No Brasil, o latim foi ensinado nas escolas até 1961. Num primeiro momento, pensaríamos: perfeito! Para que continuar ensinando uma língua defunto? Estamos vivendo a anos-luz daquela civilização. Estamos numa era altamente tecnológica e competitiva. Melhor gastar neurônios com outras disciplinas.
Num segundo momento, porém, percebemos o quanto perdemos com a ausência do conhecimento básico do latim. Esta língua falecida é capaz de fornecer aos seus estudantes fundamentos sólidos para a formação do conhecimento em geral e preparar os jovens para um futuro melhor. Muito além de facilitar o aprendizado das línguas românicas, sua estrutura gramatical faz com que desenvolvamos o pensamento lógico, pois é uma língua matemática. Desse modo, em áreas como ciência e tecnologia, engenharia, física e matemática, o latim tem seu papel favorecendo as habilidades de raciocínio crítico. Exatamente aquilo que o mercado de trabalho atual procura em seus candidatos: pensamento lógico, comunicação efetiva e solução de problemas de maneira inovadora.
Mas atenção! Aprender latim não significa trocar o Uber pelas bigas ou correr o risco de virar fast food de leão! Podemos encarar como uma malhação cerebral para bombarmos a mente sem necessidade de suplementos. Cantar ou ouvir um Ave verum corpus de Mozart nunca mais soará o mesmo. O latim é uma língua cuja sonoridade, para alguns especialistas*, está associada ao poder. Encaro isso não como o poder de um império monstruoso, mas como uma ferramenta poderosa para construção de indivíduos melhores e mais capazes.
Concordo com o Prof. Ryan Sellers da Universidade de Memphis (USA): o latim não é uma língua morta, mas eterna! Creio que aquela parada cardio-respiratória nunca ocorrerá, pois é uma língua românica, de romances, de suspiros e de acelerar corações. E, no entanto, ela continua com a declaração oficial de morta!
Gratias tibi ago
Beatriz Funayama Alvarenga Freire é médica, cantora, atleta, doutora em medicina pela Unesp, pós-doutora pela Rijkuniversiteit Groningen – na Holanda – e mestre em linguística pela Unicamp.
* Rochette, Bruno; Clackson, James (trad. & ed.) (2011), «Language Policies in the Roman Republic and Empire», A Companion to the Latin Language, ISBN 9781444343373 (em inglês), Blackwell, consultado em 18 de março de 2015
Lindo texto. Sempre nos trazendo conhecimento. Obrigada e parabéns!
Mto bom texto. Qdo entrei para o ginásio a gente tinha aulas de latim. Eu adorava. Pena ter saído do currículo. Parabéns, Bia! Sddes de vc.
Muito bom
Mais uma vez a Dra Beatriz nos traz um artigo magnífico. Assunto interessantíssimo!
Aguardando os próximos.
Adorei o texto!
Nos faz pensar em tantas outras “coisas” que estao sendo abandonadas, enterradas que seriam muito uteis para a modernidade!!!!