Lembro-me bem de quando matamos Francisco,
ele ali, exangue, enquanto nós nos ríamos,
pois não sabíamos então que não seríamos perdoados,
e que morreríamos também nós, afogados
no mesmo ranho que lhe cuspimos, nós,
os cordeiros imolados do capitalismo,
que demos nossas vidas ao lobo e às raposas pelo caminho,
que entregamos alegremente outros Chicos,
igualmente ingênuos, ah!, como era bom ouvir
quando falavam de suas tolices, e nos sentávamos
nos nossos sofás de pelica, tomando um Chateau Noir
e assistindo aos jogos do Benfica, gostosamente
instalados em nossa incredulidade lúdica,
brincando de temer o fim do mundo,
fazendo de conta que nos preocupávamos com coisas,
coisa alguma!, que nossas consciências iam além
do Padre Júlio e sua cracolância de ficção científica,
das mensagens que nos chegavam de Gaza, do genocídio,
da Eritreia, da fome na África, dos garimpeiros clandestinos,
da mortandade dos peixes e dos índios, afinal,
que fazer?, se nada está ao nosso alcance,
se a humilhação de um povo ou a ofensa a uma fé
são uma causa de dor apenas para mim,
mas não para o povo, não para a religião,
não para os coletivos outros, que não possuem
um centro existencial e que são, por conseguinte,
insensíveis à dor, ah!, que consolo!, pois só eu,
só eu importo, e me refugio em minha própria escravidão,
dentre tantas formas escolhidas, e de meu nicho de segurança
alvejo todas as formas de liberdade real ou metafísica,
essa liberdade que o homem herdou de Deus,
que é uma condição ontológica, não um livre-arbítrio,
como o quer a Academia, para retirá-la de nós
ao seu alvedrio, impondo-nos uma mutilação
da divindade que nos habita, como habitou Francisco,
que matamos, rindo-nos à socapa de suas esperanças
iludidas, de sua mensagem de idiotices, de sua cara
de argentino, torcedor do San Lorenzo, imagine!,
ainda se fosse do Boca Junior, do River Plate,
do Velez Sarsfield ou, no limite, do Defensia y Justicia.
Tito kehl