A trombeta soou a marcha, fúnebre. Onze toques. Tátá tatá tá tatá tatátatá. Ao longe, cavalos relincharam estridentemente. O velho comandante estremeceu. “Que sacanagem é essa aí, pô?” Depois, ele tentou disfarçar a súbita aflição pública. “Tá achando que eu sou coveiro?” Gotas de suor lhe desceram pela espinha até os fundilhos. Dentro do terno roto, um tremor lhe desobedecia as ordens e lhe agitava as pernas. Quem diria? O comandante – sempre tão impertinente e loquaz – não comandava nem mais o próprio corpo, que tremia à revelia diante de todos. “Que porra é essa aí, pô?”, disse baixinho a si mesmo, temendo que a marcha aziaga tonitroassenos céus outra vez.
Tátá tatá tá tatá tatátatá. E, novamente, a marcha soou. Novamente também cavalos relincharam, agora ainda mais apavorados. O velho comandante quis dizer alguma coisa, mas um medo terrível lhe travou a língua – como sempre acontecia – e ela se enrolou toda, girando entre dentes e batendo no céu da boca descompensada (a ponto de o comandante não conseguir pronunciar coisas como “legalidade”, “democracia” e “constituição” sem que as pessoas em volta caíssem na gargalhada ou segurassem o riso, disfarçando). “Não pode ser verdade,” pensou o combatente ancião. “Então, é assim que tudo termina?” Um jipe, com um cabo e um soldado, estacionou por ali. “A-po-ca-li-ps…” – tentou o comandante dizer em voz alta, apressando as sílabas, enquanto risos mais fortes explodiam.
O velho comandante nunca foi bom de entender a realidade, mas as coisas de agora lhe pareciam cada vez mais sem sentido – e ele teve vontade de chorar. “Que porra é essa?” Depois, uma saudade funda lhe pegou de jeito e ele se lembrou das doentias peripécias de uma vida que parecia completamente outra. “Aqueles tempos, sim, valiam a pena”. Esquecendo-se das pessoasao redor, o velho soldado fechou os olhos. Por instantes, memórias estouraram como bombas de lembranças.
Como era bom poder dizer impropérios sem temer o inferno. Como era bom conflagrar a turba ignara invocando o nome de Deus. Como eram vibrantes as estradas paradas (detalhadamente organizadas), as ameaças explícitas de golpe, osacampamentos fervilhando como planejado. “Mais setenta e duas horas” – o comandante se lembrava do mantra. “Seeelvaaa!” – gritou em pensamento,sorrindo de lábios fechados. “Aquela vida, sim, valia a pena”. A liberação das armas para a população “reagir”. Os planos de morte impressos em papel oficial. Punhais verde-amarelos na cintura. A boiada passando. Jagunços organizados quebrando tudo, “pondo o terror.”E a exaltação de torturadores em pleno plenário. “Aquilo, sim, é que era vida”.
Então, quatro cavaleiros e uma dama de vestes pretas surgiram sob o céu, ao longe, e tiraram o comandante do seu torpor. “Tão achando que eu sou Mané?” – gritou ele num impulso de pânico e destilando perdigotos sobre os que testemunhavam a sua chegada aos círculos concêntricos da infernal realidade. “Comunistas” – bradou, como era seu costume bradar quando alguém conseguia impedir a execução de alguma de suas temeridades e idiotias. “Eu joguei com as quatro linhas da cons-ti-tui-ção” – disse o comandante com dificuldade. “Mas a constituição tem bem mais do que quatro linhas”, gritou alguém na multidão. “Marica!” – cuspiu de volta o comandante, nervoso.
Então, eis que os quatro cavaleiros e a dama – vestindo suas vestes pretas – passaram diante do comandante, já encharcado do suor.A língua do destemido soltado aportou no seco. Um silencio sem anistia dominou a todos. Desta vez, os cavalos relincharam antecipando o som que viria em breve. Assim que os cavaleiros e a dama passaram, o cabo e o soldado abriram a porta do jipe e olharam fixamente para o velho comandante, sem dizer palavra. “Que porra é essa, pô? Maricas!” – repetiu. Súbito, a trombeta – pela terceira e última vez – ribombou marcial e cabalística pelos ares. Tátá tatá tá tatá tatátatá.
E um dia ensolarado e lindo se sobrepôs à noite gris.
Alexandre Bragion é doutor em Teoria e História Literária. Autor do livro “Casa Burguesa sem Chave” .
Da primeira parte, é o final que nós queriamos
Aguardemos com esperança a segunda parte.
O trompetista vai comparecer, quem sabe com a Internacional.
Com certeza!
Obrigado, Renee!