Bebo meu café pela manhã – que é todo dia. Quantos amigos seguram comigo a asa da minha xícara. Há fé pelas manhãs? Há fé no todo dia? Meu São Benedito sobre a geladeira – meu Ossain – recebe a xícara primeira, que a eles sirvo sem mesmo ter nessa prática uma crença tão certeira. Mas café é rito. Admito. E acho tão bonito bebericar com São Benedito e Ossain nossos cafés cheios de aromas e lembranças de uma vida inteira. Café, meu São Benedito! Sua benção, Ossain! Que as manhãs de cafés e ritos querem renovar em mim a fé no que não acredito.
Olho à janela pelas manhãs. Olho a rua. Belezas cruas, de corações e colorações diariamente semelhantes e tão diferentes. Correm os vizinhos motorizados transportando para as escolas a prole que não tenho. Correm mulheres e homens semicansados que saem de suas casas já aturdidos e estressados para o trabalho mecanizado que lhes ilude a vida – essa mesma que deles, delas e de mim é o próprio trabalho quem nos rouba. Desiludido, volto ao meu café no qual diluo a palavra cuidado, porque quase me vejo enganado ao imaginar que correr assim faz enfim a vida ter algum sentido.
Recolho meus atrasos pelas manhãs em eternas cobranças sem prazos – e rego-os com café numa estranha e demorada regata. Sobre a mesa, quase sem poesia, as certezas do mundo real: um aviso de multa, o condomínio, o aluguel, o projeto em papel não entregue na data, livros e jornais sobrepostos e em disputa, crediários pagos, valores de impostos, o existir redigido numa minuta, os remédios que o corpo salva e ao mesmo tempo mata, uma cesta velha com duas frutas.
Ouço a manhã pelo rádio. Bebo notícias. Café amargo. O rádio insiste em me lembrar que a manhã já começou e que é preciso despertar. A vida chama para sua essência – fictícia. Fico mais um pouco, invisto no atraso. O caso é que não vivo sozinho no pensamento – nem tento, não. Lá estão o Rocco, o Chico, a Selma, a Josiane, o Serjão. Decano dos meus sentidos, bebo meu café com Juliano, Zilma, Beatriz. O rádio canta o horário já ido – e a vida não perde a graça por um tris.
São Benedito! Ossain!
Bebo a manhã do meu café no todo dia da poesia que me quer – e às vezes me faz – quase feliz.
Alexandre Bragion é editor do DE e autor do livro “Casa Burguesa Sem Chave”.
Que delícia de texto! Saboroso como o café de todo dia e sua perfumada poesia!
Meu café de todo dia acaba de tormar-se ainda mais importante!