Estamos próximos do limite. Com o apoio de muitos parlamentares do Congresso Nacional e inédito furor, o governo Temer tenta transformar o Brasil em uma terra em que os interesses do povo definitivamente não contam. Por rejeitar uma volta do PT, parte dos brasileiros não quer reagir aos maus-feitos do governo.Se reagirmos a Temer e a este Congresso, corremos o risco de voltar ao controle do PT, assim pensam muitos membros da arcaica“classe média” brasileira. Desta forma, assistem inertes e atônitos os desmandos do governo que ajudaram a colocar no poder e do qual não conseguem retirar o apoio, apesar de todas as evidências de crimes. Sentem-se traídos e horrorizados, mas estão imobilizados e, apesar de todos os problemas causados pelo atual governo, continuam satisfeitos por terem afastado o PT. Com sua ignorância e preconceitos, entregaram-se a uma farsa grotesca para derrubar Dilma e impor uma nova e violentíssima rapina sobre o Brasil e seu povo. Precisam responsabilizar-se pelo que fizeram, assumir o erro e corrigi-lo, obstruindo a continuidade do golpe. Enquanto isto não ocorre, os apoiadores de Temer aproveitam-se da paralisia e da induzida ignorância reinante para aprovar um inaceitável conjunto de reformas, que visa destruir completamente a solidariedade social. As reformas da previdência e das relações de trabalho são as mais visíveis, mas há muito mais já aprovado ou em curso de aprovação. Cada dia deste governo ilegítimo é um desastre para o país. Inequivocamente, a responsabilidade é de todos que ajudaram a colocar Temer no poder.
A direita mais desvairada procura por alternativas extremas, demonstrando sua incapacidade para escapar aos conteúdos irracionais de seus delírios políticos. A amarga frustração e a impotência que experimenta voltam-se, na forma de violento ódio, contra bodes expiatórios encarnados por pessoas fáceis de agredir e não contra os verdadeiros agressores.Com isto, levantam sobre o país a ameaça de um fascismo extremo e impiedoso. O mais preocupante é que permanecem invisíveis os principais causadores dos problemas: a mídia de massa, a grande propriedade rural, as megacorporações, o capital financeiro, e o império.
O PT e “as esquerdas” não parecem interessados em uma autocrítica renovadora, alegando talvez a fragilidade causada pelo golpe de Estado. Um perigo verdadeiramente vital que recoloca o fantasma do golpe militar, da ditadura, da tortura, do exílio, do confronto radical. Por esta incapacidade de autocrítica, a credibilidade do PT e das esquerdas continua questionada.
A justiça pune alguns corruptos, mas não inspira qualquer confiança e, nitidamente,tem promovido mais perseguições, acusações sem provas e burlescas encenações midiáticas do que exercido seu poder de modo imparcial, sereno e responsável. Ela parece embriagada pelo poder, fama e dinheiro e, pior ainda dirigida por inconfessáveis vieses fascistas.
Se algum amadurecimento está ocorrendo, ele não é capaz de rejeitar a corrupção e os desvarios políticos comandam espetáculos de mau gosto.Enquanto os escândalos de corrupção ocupam o centro do palco, pagamos muito mais juros aos bancos e o Estado perde muito mais recursos com a sonegação fiscal, e com as privatizações propostas, do que tudo o que tem sido revelado pelas investigações em curso. No entanto, isto não recebe a atenção devida dos discursos moralistas e midiáticos.
Os grandes empresários envolvidos nos escândalos de corrupção apelam para a delação premiada como forma de se livrarem de responsabilidades e continuarem seus negócios do modo mais impune possível. A grotesca carta de desculpas ao povo brasileiro,escrita pelos executivos da JBS, é um documento conclusivo da imoralidade e da profunda patologia de muitos empresários capitalistas. É aviltante o acordo de leniência concedido. Estes fatos demonstram cabalmente quem de fato manda no país e o modo truculento e inescrupuloso de exercício deste mando.
Fora as esquerdas, quase ninguém aponta a corrupção da grande mídia, que distorce, omite e mente de maneira proposital para atingir fins propagandísticos. Se há uma forma de garantir que se está mal informado é acompanhar as opiniões dos grandes veículos de comunicação brasileiros.
Enquanto isso, mergulhamos na maior recessão da história recente, desencadeada pela revolta da direita política que tomou conta do país a partir da derrota de Aécio Neves. O PSDB e o PMDB puxaram o discurso feito por empresários e banqueiros contra o PT e a Dilma, desestabilizando o país. A justiça de Curitiba deu munição para os ataques que sangraram a economia e a democracia. Derrubaram Dilma, mas,incapazes de fazer a economia retornar à normalidade, debatem-se com o imenso problema que criaram. Impuseram ao Brasil e a cada um de nós uma aventura política, econômica e social custosa, irresponsável e extremamente perigosa. Deveriam ser julgados, condenados e presos não apenas por corrupção, mas também por conspiração contra o Brasil, por traição.
Colocaram todo seu ódio contra o povo em reformas neoliberais que, se não forem revertidas, promoverão uma vasta destruição da solidariedade, da riqueza e das classes trabalhadora e média. Com uma mentalidade tosca e subalterna, estão entregando o Brasil ao império, abrindo nossos mercados sem qualquer contrapartida e incentivando uma perversa entrada de capitais estrangeiros para dominar nossas atividades produtivas, comerciais e financeiras. Fizemos isto antes com o Collor e, depois, descobrimos que os europeus e os norte-americanos não iriam permitir que nossos produtos acessassem seus mercados. Pairam sobre nós a ameaça de relações de trabalho similares à escravidão e de um retorno às práticas coloniais. Nem a ditadura de 1964 ousou propor tamanho absurdo.A queda não se fará esperar.
A insanidade dos dirigentes da direita brasileira aparece na perseguição que fazem aos mais vulneráveis e aos seus opositores, como no massacre da Fazenda Santa Lúcia no Pará em 24/05/17, no ataque contra os dependentes químicos da chamada Cracolândia no bairro da Luz em São Paulo e no emprego das Forças Armadas para reprimir manifestações em Brasília. Eles não demonstram ter condições psicológicas, morais, e culturais para perceberem a irresponsabilidade, arrogância e criminalidade de seus atos. Covardemente, projetam sobre os pobres,os vulneráveis e os manifestantes, sua própria preguiça, ignorância e malevolência. Vivem de negar seus atos e seus crimes e de promover seu próprio enriquecimento ilícito.
Todo poder emana do povo. E, neste momento, por um motivo ou outro, o povo está perplexo e revoltado com seus dirigentes e também perplexo e revoltado com os seus iguais pelo apoio que continuam a dar aos dirigentes que preferem. Esta é uma condição que não pode perdurar porque provocará rupturas mais graves para a estabilidade não apenas política, mas social.
Se isto nos escapa, certamente não escapará às potências estrangeiras e ao seu oportunismo imperial. Estamos preocupados em nos odiar como se pertencêssemos às torcidas de times rivais, mas deveríamos perceber que nossa insensatez promove invejosos e maliciosos interesses externos, que gostariam de ver o Brasil na pior condição possível ou mesmo destruído de uma vez por todas.
A repetição dos escândalos parece querer dar uma lição aos que assistem aos problemas, afirmando sorrateiramente que a corrupção é parte da natureza humana. Mas, devemos repelir com vigor esta afirmação infamante, contrapondo a ela aquilo que a lei garante: as responsabilidades são individuais e ninguém deve pagar pelos crimes alheios.Portanto, nenhum ser humano é corrupto até que se prove que ele se corrompeu. Não devemos aviltar nossa dignidade pela indignidade dos corruptos. Se alguém rouba alguns poucos reais para sobreviver, ele é um ladrão. Contudo, se esse alguém rouba bilhões de reais, zombando de todos, ele será considerado um grande cidadão dos negócios, da política ou da mídia, acima da lei e potencialmente dirigirá a vida de todos. Esta situação expõe nossas incapacidades coletivas.
Neste momento, a resposta para o caso do Brasil é relativamente simples, mas difícil de praticar. A desigualdade, as discriminações, a concentração da renda e da terra, a violência contra os mais vulneráveis,a impunidade, e os discursos que promovem estes abusos,não devem ser aceitos porque violam o único projeto viável que é construir um país mais fraterno, igual, tolerante, decente e democrático. Todo ataque contra a solidariedade deve ser rejeitado com veemência, venha ele das empresas, das religiões, dos grandes meios de comunicação, dos partidos,do Estado (executivo, legislativo e judiciário), ou de qualquer outra fonte. Tudo o que aumenta o poder dos muito ricos deve ser percebido como suspeito e inadequado. Tudo o que retira direitos dos trabalhadores e dos mais pobres deveser encarado com igual suspeição.
Democracia Já!
Antonio Almeida é doutor em Sociologia pela FFLCH-USP. Professor Titular do Departamento de Economia, Administração e Sociologia da ESALQ-USP. Coordenador do Diversitas – Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos – FFLCH-USP.