Estas notas foram elaboradas como subsídio a discussões entre ativistas e especialistas envolvidos na elaboração de propostas para programas de governo para as eleições presidenciais de 2018, especificamente num eixo temático denominado Transição Ecológica.
As ideias aqui apresentadas, nesta versão com pequenas modificações em relação ao texto original, foram redigidas de maneira muito rápida e relativamente descuidada, porque estavam inseridas num diálogo com outras contribuições e posicionamentos que vinham sendo expressos naquele momento.
Esta advertência inicial serve como um pedido de desculpas antecipado ao leitor pelas insuficiências e omissões que fatalmente serão percebidas nas páginas a seguir. Elas estão orientadas sobretudo em torno de uma preocupação central: a relação entre o tema da “transição ecológica” e os demais num plano de governo. O ponto de partida é a afirmação de que qualquer perspectiva de uma verdadeira “transição ecológica” não pode, por definição, ser objeto de um tratamento tópico; diferente disso, ele precisa orientar a estratégia mais geral e a visão de médio e longo prazo subjacente ao conjunto de proposições temáticas de qualquer plano de governo e, pois, da ação do Estado, para além da questão ambiental.
Transição ecológica: do que se trata?
Não é por mero acaso que a expressão “transição ecológica” é grafada aqui entre aspas. Ocorre que não existe uma literatura científica em torno desta ideia. Outras similares já foram lançadas no passado recente, como a economia de baixo carbono ou, antes ainda, o desenvolvimento sustentável. No plano normativo, pois é disso que se trata, a melhor formulação disponível atualmente encontra-se na Agenda 2030 e nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, compromissos que resultaram dos Acordos de Paris, em 2015, conduzidos pelas Nações Unidas e com participação dos vários países de todas as regiões do planeta, Brasil incluído. Ali se estabeleceram metas em vários domínios, da pobreza às mudanças climáticas passando pelas desigualdades de várias ordens, emprego e crescimento econômico, energia, entre outros.
Cumprir as metas pactuadas nos marcos dos ODS deveria ser a principal aspiração de qualquer plano de governo, porque envolvem compromissos assumidos formalmente pelo Estado, e porque representam um conjunto coeso de resultados a alcançar. E como se sabe, nos anos recentes estamos caminhando na contramão daquilo que se esperaria, como mostra recente documento preparado pelo Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030, disponível no link: http://artigo19.org/wp-content/blogs.dir/24/files/2018/07/Relat%C3%B3rio-Luz-da-Agenda-2030-S%C3%ADntese-II.pdf . Mais importante do que as metas em si, separadamente, é o convite implícito, no conjunto dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, para que se constituam novas narrativas sobre como alcançar o crescimento, o bem estar e a conservação da natureza, respeitando as interdependências entre estes distintos domínios. Coerente com esta visão geral, a ideia de “transição ecológica” aplicada ao contexto brasileiro atual deveria pressupor, portanto, mais do que o atendimento tópico de questões relacionadas a agendas setoriais (ambiental, agrícola/agrária, industrial ou outras). Ela sugere uma mudança substantiva nas formas de relação entre sociedade e natureza e, com isso, uma alteração qualitativa na maneira como os recursos naturais – materiais, energia, capacidades ecossistêmicas – são transformadas em bens e serviços voltados a satisfazer o bem estar dos brasileiros. Não é pouca coisa.
Para pensar em vetores de atuação capazes de operar este tipo de mudança no tempo presente é preciso olhar para as lições da trajetória recente e para os desafios do futuro.
Olhando para o passado recente, é correto afirmar que durante a primeira década e meia do século XXI ocorreu uma situação ambígua. Houve redução no ritmo do desmatamento, mais inovação no aparato regulatório e nas políticas públicas e programas setoriais, mais ações de controle de abusos e crimes ambientais. É inegável. Ao mesmo tempo houve o fortalecimento dos setores produtivos intensivos em recursos naturais, uma agenda de grandes obras de infraestrutura, muitas delas com considerável impacto sobre populações tradicionais e sobre a natureza, um aumento da dependência das fontes fósseis e poluentes de energia.Por tudo isso, para ser levada adiante a contento, a ideia de transição ecológica num eventual novo governo precisaria ir além da reedição ou mesmo do aprofundamento de medidas tomadas anteriormente, sob pena de se aprofundarem estas ambiguidades. É preciso, portanto, rediscutir a posição do tema “transição ecológica” nos marcos mais gerais das estratégias e prioridades do modelo de desenvolvimento brasileiro. Um desenvolvimentismo verdadeiramente novo precisará superar os termos da experiência já vivida.
Olhando agora para o futuro, no plano internacional o Brasil é colocado diante de incentivos contraditórios, que podem reforçar o dilema e as ambiguidades da década passada: podem levar ao aprofundamento de nossa posição de exportadores de bens primários, ou à emergência de uma nova economia. Sob o ângulo do reforço na especialização em produção de commodities, todas as expectativas de crescimento demográfico e econômico apontam para um mundo cada vez mais “asiático e africano”. Como são continentes com altos índices de pobreza, este crescimento e a eventual elevação da renda tende a se transformar em maior demanda por exportação de proteínas e minérios por parte de países como o Brasil e vizinhos latino-americanos. Sob o ângulo dos estímulos a uma nova economia, há os novos estilos de consumo das classes médias dos países mais ricos ou das economias emergentes (cujo exemplo mais conhecido são produtos orgânicos, mas não só), e há também uma revolução tecnológica em curso, com enorme expansão e diversificação das possibilidades de usos dos recursos naturais (aqui se trata das novas formas de produção de energia, mas também de usos da biodiversidade e mesmo a valorização e remuneração por serviços ambientais).
A tentação é, claro, aproveitar o melhor de cada uma destas oportunidades. Mas simplesmente tentar acomodar estes dois incentivos, por justaposição, resultaria em algo como uma estratégia esquizofrênica, posto que o avanço do primeiro conjunto solapa as bases do segundo. Em uma palavra, não é possível ter uma política de “transição ecológica” coerente com as exigências do século XXI associada a uma política industrial que reforce como apostas de longo prazo setores típicos do século XX como minérios e produtos agrícolas in natura tal como vêm sendo produzidos, fontes fósseis de energia ou outras geradas em bases mecânicas e hidráulicas, indústria automobilística tradicional. Estes são setores importantes para a posição do Brasil na ordem internacional hoje, mas tendem a ver reduzida sua inserção estratégica na formação de valor e na composição da fronteira tecnológica nas próximas décadas. Apostar todas as fichas nisto significaria reforçar a posição de subordinação tecnológica e nas condições das trocas do comércio internacional futuro.
Possíveis vetores de transição
O que foi dito acima poderia levar a uma reação do tipo: não se pode jogar fora o petróleo do pré sal ou a posição de destaque do Brasil no comércio internacional de carnes e grãos. Claro que não. A questão não é abandonar as vantagens comparativas atuais, mas usá-las na direção de construir novas vantagens competitivas numa economia do século XXI. Com algumas diferenças relativas à base de recursos, é este tipo de transição que vem sendo conduzida pela China no período recente. É este o tipo de transição que o Brasil precisará fazer. Uma operação desta envergadura envolve um amplo esforço. Ao menos cinco grandes vetores precisariam ou poderiam ser mobilizados para tanto.
- Política de ordenamento territorial – É simplesmente impossível coordenar uma agenda de desenvolvimento numa perspectiva de transição ecológica sem uma robusta política de ordenamento territorial. É assombroso que o Brasil não tenha uma política de ordenamento territorial de fato, quando se pensa em sua complexidade, dimensões continentais e no caráter absolutamente estratégico de suas fronteiras e de sua base de recursos. Uma tal política implica na harmonização de um conjunto de peças hoje organizadas setorialmente, mas que dependem de uma ação centralizada do governo federal para que exista alguma convergência. O resultado é que, diante de eventuais mudanças de governo, este esforço de coordenação cai por terra, porque está ancorado em vontade política do governante e não numa arquitetura institucional sólida, como aliás se viu nos anos mais recentes, pós golpe. Uma política de ordenamento territorial deveria regrar e comandar planos setoriais como os planos decenais ou duodecenais de energia, mineração, entre outros. Deveria também atualizar, integrar e harmonizar instrumentos de ordenamento territorial já existentes como o Estatuto da Cidade, a legislação sobre o parcelamento do solo urbano, o gerenciamento costeiro e o Estatuto da Terra e a legislação fundiária. Este tipo de ação, além de submeter interesses setoriais a uma lógica de coesão social e territorial permitiria equacionar um conjunto de tensões hoje existentes: definindo de melhor forma a complementaridade entre espaços de participação e gestão social e as atribuições de veto, comando e controle do poder executivo; tornando mais eficientes mas não menos robustos os instrumentos de licenciamento ambiental, entre outros aspectos; enfrentando problemas novos como a internacionalização e a financeirização do mercado de terras (o chamado landgrabbing).
- Aperfeiçoamento de programas e políticas existentes ou já experimentadas –Desde a Constituição de 1988 e, mais acentuadamente, durante a primeira década do século XXI houve a criação de vários programas que podem ser fortalecidos, ampliados e melhorados numa tal lógica. O Programa Bolsa Verde é um exemplo: foi uma importante inovação, mas de alcance relativamente restrito e apenas parcialmente articulado com outras iniciativas. A Estratégia de Inclusão Produtiva do Programa Brasil Sem Miséria, idem. O Imposto Territorial Rural é um claro exemplo de algo ineficiente e sobre o qual a sociedade brasileira tem um nível de conhecimento baixíssimo. Num quadro de restrição fiscal, seria fundamental introduzir uma legislação que permita onerar pesadamente o setor especulativo e que gera impactos ambientais e sociais negativos, que poderia até ser neutra num primeiro momento para os setores mais produtivos, e regressiva de forma a beneficiar produtores que façam um uso mais eficiente, tanto sob o ângulo social como ambiental, dos recursos naturais. O mesmo vale para os vários fundos públicos de financiamento existentes e diversos outros programas e políticas poderiam ser aqui citados. O importante é o sentido dos ajustes, de forma a coloca-los em consonância com os requisitos de uma transição ecológica.
- Gestão antecipada dos conflitos socioambientais – Experiências recentes como a BR163 e a Usina Hidrelétrica de Belo Monte trouxeram consigo a tentativa de associar a mitigação e compensação pelos impactos destas obras a planos e investimentos mais estruturais relacionados ao desenvolvimento do seu entorno, de forma a proteger ou beneficiar as populações ali residentes. Os resultados, no entanto, são no mínimo controversos. Parte disso se deve ao fato de que é muito difícil manejar as dinâmicas desencadeadas com os enormes fluxos demográficos e de recursos mobilizados com estas obras. Parte se deve ao fato de que há pouco pensamento estratégico para o desenvolvimento das regiões em conflito. No mais das vezes há listas de investimentos que são extremamente importantes, mas de caráter imediato e voltado a compensar o déficit estrutural acumulado em equipamentos públicos e serviços sociais. Não precisaria ser assim. Os planos de expansão dos investimentos do setor agropecuário, da mineração e do setor de energia permitem projetar no tempo um mapa potencial de conflitos socioambientais que devem ocorrer nos próximos vinte anos. A criação de unidades de conservação em posições estratégicas para conter ou arrefecer o avanço da frente de expansão da agropecuária foi um passo importante desse tipo de ação. Mas é preciso mais: um plano especial para estas áreas onde estes investimentos ainda irão chegar, de forma a prepara-las para uma transição no estilo de organização territorial, fortalecendo seus laços sociais e econômicos e criando novas oportunidades à altura dos desafios que virão. Em outros casos é mesmo o caso de se evitar estas novas obras e atividades, como por exemplo novas grandes hidrelétricas na Amazônia, que deveriam ser substituídas por novas fontes de energia, que vão se tornando cada vez mais viáveis com a redução dos custos das tecnologias a elas associadas, como bem o demonstra a expansão da energia eólica no Brasil ou da solar em outros países.
- Nova matriz produtiva – Este é um aspecto central. Os setores hoje mais dinâmicos da economia brasileira precisariam ser submetidos a maiores condicionalidades e a melhores incentivos ambientais. Os setores ainda incipientes e mais condizentes com uma economia do século XXI precisariam ser emulados de maneira mais significativa, menos tímida e pontual. Isto envolve uma arquitetura legal e fiscal, que permita onerar os setores intensivos em recursos naturais e geradores de alto impacto ambiental, e financiar os setores emergentes e mais eficientes sob critérios sociais e ambientais. Isto envolve também uma política científica e tecnológica capaz de geras as inovações necessárias, enfrentar gargalos de soluções, diminuir custos de produção. Isto envolve, ainda, a construção de mercados para estas inovações e novas formas de uso dos recursos naturais. Quatro conglomerados de setores precisariam receber atenção e diretrizes especiais: agropecuária e alimentação, energia e mineração, transportes e indústria automobilística, química e biotecnologias. Em todos eles é possível e necessário introduzir modificações nas formas de uso de materiais e energia, no modelo tecnológico adotado, nas formas de tributação e incentivo, no acesso e organização de mercados. Apenas um exemplo: é reconhecido o enorme potencial brasileiro em energia solar e eólica; boa parte deste potencial está em áreas de baixa dinâmica econômica e com concentração de populações pobres; no entanto, pouco há de conexão entre estas três dimensões na arquitetura institucional direcionada a este setor. Outro exemplo: o Brasil criou dezenas de novas universidades, boa parte delas nas regiões interioranas do país; centenas de institutos de tecnologia também foram criados nas mesmas áreas; mas qual é a relação entre estas universidades, institutos de tecnologia e a rede de ensino fundamental e médio nestas regiões? Ou qual é a relação entre esta base científica e tecnológica e a geração de projetos estratégicos apoiados, por exemplo, articulando a rede de cidades médias do interior do Brasil e seu entorno? Um último exemplo: o transporte no Brasil, urbano ou de cargas, é um problema crucial. Seguiremos apostando nos mesmos caminhos do século XX? Ou novos sistemas, novas formas de combustíveis, novos modais poderão surgir como respostas? A experiência da indústria naval (ainda que organizada em torno de outros objetivos) gerou lições que podem ser traduzidas em formas de articular provimento de bens e serviços com estímulos a mudanças na base produtiva. A experiência do programa de biodiesel, idem. No plano internacional o melhor exemplo é o da Coreia, onde houve forte conexão entre distribuição de ativos, uma nova base científica e tecnológica, e um perspectiva de transição industrial planejada. A Coreia o fez na transição de um capitalismo apoiado na produção de bens de consumo de massas para o contexto de um capitalismo apoiado na microeletrônica. Saiu da condição de um país da periferia para a de uma potência industrial e tecnológica. O Brasil precisará fazê-lo também, mas agora no contexto de transição de um capitalismo pós-industrial para uma sociedade capaz de colocar o enfrentamento da desigualdade e dos problemas ambientais no centro de suas estratégias de transição, e não como preocupações a serem tratadas a posteriori ou meramente por meio de mecanismos redistributivos – é preciso desconcentrar e tornar ambientalmente mais eficiente a própria produção de riquezas, bens e serviços para o bem estar.
- Coalizão de forças sociais comprometidas com a nova agenda–Tudo isso é impossível sem que se pense numa nova coalizão de forças sociais capaz de apoiar e sustentar esta nova agenda. Esta é a tarefa mais complexa e é aqui que os bons planos costumam naufragar. É preciso deixar claro quem ganha e quem perde. Uma transição implica em desalojar os interesses da velha ordem, sem que exista ainda uma base sólida para a nova ordem em direção à qual se quer transitar. Um dos problemas para se pensar nas coalizões de forças sociais hoje em dia é que muitas vezes seguimos pensando na velha conformação dos interesses típica do capitalismo do século XX: o capital industrial nacional, “a” classe média. Seria o caso de se perguntar se num capitalismo internacionalizado e financeirizado ainda existe este setor do capital industrial comprometido com o interesse nacional, ou se boa parte deste capital pode se reproduzir facilmente nos circuitos financeiros, sem a necessidade de arriscar-se com a produção. Quem são os portadores das inovações e dos interesses associados a uma transição ecológica na economia brasileira hoje? Da mesma forma, será que existe uma única classe média no Brasil atual ou ela é suficientemente heterogênea para que parte deste amplo e crescente segmento possa ver vantagens e o atendimento dos seus interesses numa transição deste tipo? Por fim, é preciso pensar em atores territoriais: boa parte dos prefeitos de pequenas e médias cidades consideram que estão sendo penalizados com o modelo produtivo e com a estrutura de arrecadação que sustenta o pacto federativo brasileiro; não raramente, nas regiões de produção de commodities, elites locais reclamam das perdas associadas à chamada Lei Kandir e a isenção de impostos sobre os produtos de exportação in natura. Uma agenda de transição tem que ser uma agenda pactuada com novas forças sociais e possivelmente com novas organizações representativas destas forças. Sem isso, dificilmente boas ideias sairão do papel. Isto não se alcança num plano de quatro anos. Isto implica num plano de enfrentamento de alguns dos bloqueios históricos mais estruturais da formação do Brasil. Algo que, isso sim, precisa ter num plano de governo o mapa do caminho e as bases para a pactuação necessária em torno de onde se quer chegar e como.
Arilson Favoreto é Sociólogo. Mestre em Sociologia (Unicamp). Doutor em Ciência Ambiental (USP). Realizou estágio de estudos na École des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris (França). Foi professor visitante da Flacso – Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (Equador) e da Universidade de Caldas (Colômbia). É professor na Universidade Federal do ABC, onde é vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Gestão do Território.