É hora do chá com bolachas. Nem a televisão ligada desperta a razão da vida presente, desinteressada e desinteressante. Colcha sobre as pernas. Dedos no cabelinho enrolando pensamentos. É hora do chá. A esperada hora do chá com bolachas. Tão importante momento do existir paralelo, do viver um belo inconsciente repleto de purezas, docilidades e despreocupantes certezas.
Que bom. A hora do chá aquece também o nosso coração atribulado, só de vê-la assim: bebendo seu chá, sentada torta, meio de lado. Por Deus, o chá com bolachas não vem com rigores profissionais, não tem atropelos morais ou descompassos quânticos da existência. Na expectativa ausente de quereres, o chá simples e pobremente agradável é bálsamo quente e indispensável, combustível que alimenta a alegria do pouco se saber do muito que aqui fora ainda é do dia.
Depois do chá, voam pelos ares pensamentos-emoções. Nos seus quase cantares, nos seus quase pesares, o evocar de épocas em canções. Os dedos agora tocam um instrumento substanciado de tempo, perfeito que imperfeito porque feito de vozes aladas e desconhecidas da consciência que delas nada sabemos. As conversas, depois do canto, assomam-se cruzadas e atravessam sistemas de comunicação ligando risos e poemas que nunca existiram até então.
A boneca na mão, feito filha chorando, poetiza a raiz da maternidade que se foi fincando, idade por idade, no passar de sua essência-criação, na sua força feminina dada como sina, dada como prole em escada comprida a se estender durante a vida e pelo chão. Não há tempos presentes. Não há indicativos em verbos de hoje. Tudo é, felizmente, o estar por detrás da realidade e da solidão de um mundo, tão longe, enclausurado na escuridão.
Seu sonhar permitido embala um berço imaginado e sentido. Há tantos cuidados, há tantas preocupações com o “menino” a todos invisível que a ilusão do não-visto se faz motivo honesto de esquecermos de todo o resto para ajudá-la na tarefa iniciática de materna intenção. De repente, somos nós a segurar o cesto feito berço onde dorme o corpo vivo da imaginação. Então, há missas, há batismos, há rezas-novenas. Um padre, na televisão, abençoa distante a mãe, que é nossa, que é todas as mães que rezam ou sonham em seus paralelos de visão.
Ao sono, nem a missa se completa nem a oração. A hora do chá já foi? O corpo de dor se agita. A tarefa bendita da criação da boneca-menino é exercício constante que deixa exausto o físico e a emoção. Não é mais hora do chá com bolachas, mas quem se importa? A hora se faz na hora, no instante e na infusão da erva que vem da horta. Há mal em outro chá? Claro que não.
O chá bebido morno espanta o risco e o medo. Não há vírus nem finitudes anunciadas em percepção. Não há pertencimento em terra arrasada nem gana por dinheiro, por máscaras, por luvas, por aparelhos médicos quaisquer – riquezas do momento. Não há o saber sobre o que sobra para ela na conta incerta de uma sociedade abjeta que se projeta sumamente mais importante do que a vida que se encerra, idosa e cansada da batalha, numa cadeira de rodas que a valha plantada num asilo ou, com sorte (com muita sorte), numa sala de estar.
Pode o mundo cuspir sobre os homens o seu mal, que na tela mental – ainda bem! – da mãe que envelhece o mal é coisa que se esquece tão logo a boneca no colo faz seu sono em mansidão, tão logo o chazinho quente vem despertar de repente o espírito já quase em dispersão. Soubesse ela – soubessem elas – o que mundo pensa dos que se esqueceram de permanecer jovens no para sempre.
Já não é mais hora do chá com bolachas. O bebê e sua mãe zelosa agora dormem indespertos de um mundo que assombra e ruge. O berço descansa um pouco da mão que o balançava compulsório. Tudo dorme num quase sagrado desconhecido, tudo relaxa na ilusão de um universo singelo e aleatoriamente construído. E eu, e nós, despertos, pensamos o quão bom é poder esquecer e deixar de ser o de todo dia. Viver talvez não é melhor que sonhar – nem é possível sem ele. Porque esquecer é necessário para se lembrar.
Meu chá com bolachas não tem hora certa para acontecer. Saber dele e sorvê-lo à hora que eu quiser é que me é triste. Sinceramente, ainda muito triste.
Alexandre Bragion é editor do Diário do Engenho.