Gota d’água

Gota d’água

Notícias e imagens terríveis de migrantes em sua esperança de alguma vida em outro lugar não faltam, embora falte disposição e vontade – ou que for – para ao menos amenizar a tragédia. E é sobre a travessia, a morte no mar, que me toca escrever. Ao trágico do tudo empenhado para tentar a “vida” em outro lugar, enfrentando a fome, a sede, a morte nas águas, não me é dado recusar a memória.

Coincidências – sincronicidades (?) me tiram do “simples” informar-me. Olhar para a dor que não havia alcançado, Hannah Arendt me possibilitou imaginar, foi o início. Depois, o barco com corpos encontrado à deriva no Pará e a “gota d’água” (não é um infame trocadilho): “Voluntários recuperam e transformam cemitério de refugiados mortos na Grécia” (https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2024/04/voluntarios-recuperam-e-transformam-cemiterio-de-refugiados-mortos-na-grecia.shtml).

Na biografia de Arendt: “Por Amor ao Mundo”, a autora Elizabeth Young-Bruehl conta que “Numa discussão sobre a Odisséia de Homero, Arendt comentou que as linhas que a comoveram mais profundamente foram as que contavam como Ulisses, à deriva num mar bravio, agarrando-se à estrutura do barco que havia feito para escapar da ilha de Calipso, desesperou-se e pensou em desistir e afogar-se. Ele caiu em si quando se lembrou que se o seu corpo fosse perdido não receberia os ritos fúnebres; ele e seus feitos iriam desvanecer-se da memória humana” (página 224, Editora Relume-Dumará, 1997). Até essa leitura, a despedida de seu cão, Argos, quando Ulisses retorna depois de 20 anos de ausência, me era a cena mais comovente. Arendt me fez olhar para outra dor – a dor de Ulisses, o quase desistir, o deixar-se morrer no mar, o deixar-se esquecer.

Mas não estou comparando a dor de Ulisses com a dos imigrantes que enfrentam o mar. Ulisses voltava para casa, para Ítaca, os encontrados mortos no Pará não voltavam. Os refugiados sepultados na ilha grega de Lesbos não voltavam, fugiam de um lugar que não era mais casa, não mais merecia esse nome. O que o trecho na Odisseia me fez foi olhar para o desespero da travessia – olhar para a mãe que com medos no peito amamenta a menina-bebê. Olhar para o pai que olha o pequeno, recém completou (completará?) 7 anos, e já soma aos medos os medos do mar. E, mãe e pai, como consolarão o pequeno se palavras não têm? Se consolo lhes falta?

“Volto” ao cemitério na Grécia, aos voluntários que “passaram meses limpando o terreno, descobrindo e contando os túmulos que haviam desparecido sob a grama alta ao longo dos anos. As sepulturas feitas de cimento e cobertas por pedrinhas brancas agora substituíam os montes baixos de terra que mal podiam ser identificados por um pedaço de mármore quebrado ou de madeira.”.

Volto à “gota d’água”, ao que não deixou em paz meu coração: “Desconhecido bebê. Menina. 3 meses”, “Menino desconhecido, 7 anos de idade”. Diferentemente de Ulisses, “deixaram-se afogar”, não chegaram a Ítaca.

 


Sergio Oliveira Moraes é físico e professor aposentado ESALQ/USP

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