Gordo e Lustre

Gordo e Lustre

É noite. À escrivaninha, sob a pouca luz do lustre, um embuste de crônica-poesia flagro: de repente, dou conta de que nunca tive na vida nem o pensamento magro. E sei, desde pequeno, o segredo eterno, cru e sereno dos encorpados:  da física (mecânica) conheço o traço, quem não tem velocidade ocupa tempo e espaço.

Ai, filosofia! Ai, verdades e adiposidades! Hermenêutica de obesa lição. Se a música dá sentido ao tempo porque o completa com materialidade, se a literatura dá ao tempo sentido com um corpo-texto em concretização, o gordo preenche o tempo com o espaço sempre vasto com o qual Deus lhe sacaneou no ato da criação.

Ai, ciência-paciência dos volumes! Eureca! –gritou o físico em newtoniana descoberta – quando, observando a tarde vã, tomou na cabeça, o gênio, uma pancada de maçã. Meleca! –gritei eu, sofrendo a força atmosférica do peso da razão certeira que, nesta semana, vejam vocês, me fez quebrar outra cadeira.

Ria – que eu também riria. É que na história da obesa verdade, no mundo, prevalece sempre a ironia. Por exemplo. Outro dia encontrei num restaurante o médico – magro – que me disse que para ser magro é só comer pouquinho. Pois o encontrei à mesa, enchendo o copo (e a cara) de cerveja, diante de um belo prato de arroz, feijão, fritas e um suculento filezinho.

Olhai por nós São José Soares, o Jô, gordo-mor de nossos altares – que um dia vaticinou que o mundo precisa se refazer: é que metade da humanidade passa fome para emagrecer, e a outra metade– esquecida e faminta– pede a Deus apenas para comer.

Ai, seca literatura dos magrinhos e magrinhas sem cintura. Quanto sobrepeso faz peso no seu caminho? Que para fazer poesia parece que não se pode ter gordura. Loas ao corpo inteiro de Mário de Sá Carneiro! Elegias em romaria à obesidade de Oswald de Andrade! Salve, poetinha Vinicius! –que tinha de gordo só um pouquinho, ao que pesasse ser um tanto barrigudinho.

Ai, peso sem lirismo da vida inteira – lembro-me de novo e outra vez do enxuto Manuel Bandeira – a quem sinto e parodio: criou-me para atleta meu pai. Atleta, não foi de jeito. Sou poeta “maior”, perdoai. Ai, vida. “Doutor, o peso está bom?” Me socorro agora em Drummond, porque – eu não ia te contar – mas essa lua, esse lustre, esse conhaque botam o gordinho aqui (eufemismo fiado) comovido como o diabo.

 


Alexandre Bragion é auto do livro “Casa Burguesa Sem Chave” e editor do DE.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *