Sempre existe algo de idiotia nas representações de Jesus,
sempre ele é mostrado com uma expressão vazia
– acho que é pra sugerir “paz” de espírito –
sempre seus gestos são calculados, ou histriônicos, ou contidos,
sempre aquele jeito no olhar, tããão compreensivo,
sempre aquela coisa humana, cheia de adjetivos,
oh, como ele é bom,
oh, como ele é justo,
oh, como ele é santinho,
e assim, perde-se a divindade, elimina-se a transcendência,
e ele é transformado numa patética imitação de nossa própria referência,
como se tivesse nossas mesmas limitações e um ego parecido,
só um pouco mais evoluído, mas um ego, anyway,
como o temos nós, fruto exatamente de nossa queda e do nosso exílio,
que mostramos pela rua e pra nós mesmos,
conforme a conveniência e perspectiva,
e um cuidadoso cálculo de perdas e ganhos, que efetuamos
a cada microssegundo de nossas vidas.
Nada mais inútil, pernicioso e anti-Cristo,
do que essas representações ridículas, ele, o limpinho,
sempre tranquilo – não que não o fosse, mas o que importa isso? –
ele, que não serve pra nada, além de ser um exemplo
de uma doutrina mal elaborada,
que não passa de uma moral canhestra, ao molho celestial
de alguma promessa duvidosa, que será cumprida ou não,
e que ninguém sabe com que fim, senão que acabamos todos
de sandália e camisola, a girar no espaço vazio,
como gelo numa cuia, cada qual com sua harpa desafinada,
cantando monocordicamente “aleluia”.
É só isso? É só isso?
Fico com os besouros que se escondem sob as pedras,
fico com o rastro dos caramujos,
fico com a poeira na sola dos sapatos,
fico com as criaturas infinitesimais que habitam
os fundos dos precipícios.
Afivelamos na face de Cristo a cara que faríamos
se estivéssemos na situação dele, ah, é claro,
eu, o perfeito idiota sujeito a tudo o que há no mundo,
com meu humor variável, ora alegre, ora iracundo,
justo eu, me arvoro em modelo divino, e pouso para os flashes
fazendo cara de bom menino – como se o fosse, mas nem isso! –
e pretendo assim comover as beatas e os coroinhas
e meia dúzia de burgueses enfastiados com a própria vida vazia,
que me veriam como modelo de um “comportamento”
que jamais teriam, não fosse a ameaça do inferno,
muito eficiente, ou a promessa do Reino vizinho,
e o que essas pessoas pensam?, que Deus nos enviou seu Filho
(tomemos como verdade, nem que seja para efeitos de raciocínio)
a esse mundo de atrocidades nuas, para que nos ensinasse
boas maneiras, com licença, obrigado, perdão, desculpe,
e o momento certo de atravessar as ruas?,
o que imaginam?, uma recompensa celeste
por terem usado cueca, por terem cortado as unhas?,
pelo penteado correto, o linguajar distinto,
ou por repetir, como papagaios, “Senhor! Senhor!”,
com a boca cheia de ratos, sem convicção alguma,
ou por reprovar – nos outros – aquilo que lhes faltou coragem, força,
determinação, ousadia, porraloquice, verruma
para abrir buracos na própria carapaça, e expor a alma
aos vendavais que assolam a mente, que levantam as vagas
e nos impedem de enxergar além da espuma?,
o que querem, afinal, ser arrebatados, mas com que direito?,
qual o mérito?, esse ajoelhar patético, essas expressões dolorosas,
esse ânimo condescendente de quem elegeu seu próprio patíbulo,
e o dispôs comodamente para um enforcar-se tranquilo,
sem perigos, sem que a calça perca o vinco,
sem que apareça a calcinha num gesto mais impensado,
no orgasmo abrupto de se sentir tão boazinha?,
ah!, as noivas, os noivos de Jesus, que delírio mais lindinho,
“primeiro eu!, primeiro eu!”, que sempre fui o mais bonzinho,
e penetro assim na Câmara para ser comido
num banquete antropofágico e ensandecido,
“mas ninguém me contou nada, nem falou de algo parecido!”,
não, meu caro, vozes da sua cabeça, conversas com seu umbigo,
foi você que não entendeu nada, e que agora se apresenta inocente
perante um muito mal explicado Juízo,
que nem você nem ninguém define o que seja,
senão que acontecerá no fim de tudo, mas, tenha certeza,
nem isso, porque não há esse instante final,
o mundo não vai acabar, nem tudo vai congelar
e permanecer reduzido,
porque o Infinito é maior, e não tem parada,
e a única coisa certa na vida, é que ela não acaba,
e que, por mais que se avance, sempre haverá outra coisa por trás,
outra coisa maior, outro trem, outro negócio
esperando para ser incluído.
E, no final de tudo, é esse rosto estúpido
que resolvemos atribuir a Cristo.
Tito Kehl é arquiteto, escritor e presbítero pela Ordem Hospitalar Sanjoanita. Autor de diversos livros, publicou em 2023 – pela editora Terra Redonda – o livro “Poemas ao Deus Desconhecido”.
Muito bom