Envelhecer tem suas desvantagens muito claras: a vista que à vista não se vende, os cabelos que vão dando adeus ao que é de Deus, os ossos, os ofícios e os orifícios que só funcionam com muitos sacrifícios, o espelho que repele o pelo sobre a pele, o de lembrar que a gente esquece e o de esquecer que a gente sempre lembra e ninguém merece. E o ficar. O ficar enquanto outros tantos se vão. E o perceber, nesse movimento, a chegada lenta do fatídico dia-em-breve.
Me lembro que minha mãe, já nos seus oitenta anos, às vezes lamentava um pouco o fato de sentir-se uma espécie de agente da memória – uma cronista da vida a testemunhar e a registrar, décadas atrás de décadas, as passagens alheias de entes queridos, de amigos, de amigas e até de desconhecidos. Como uma espécie de tabeliã do tempo, de cartorária da morte, minha mãe – pouco antes de ela mesma ir-se embora – contabilizava na mente a morte dos pais, da irmã, do marido, dos sogros, dos cunhados, de algumas cunhadas e de sobrinhos.
Era aparentemente momentânea em minha mãe essa desalegria de ter tido o privilégio – será que foi mesmo? – de ficar e fincar raízes falsas no tempo. Por oitenta e cinco anos, minha mãe – como uma árvore que atravessa os anos – viu guerras, conflitos, ditaduras, democracias. Viu e ouviu promessas de uma vida melhor. Acreditou e se desiludiu que um dia as coisas mudariam. Estudou. Trabalhou. Criou os filhos. Aposentou-se. Envelheceu. Envelheceu. Envelheceu. E morreu. Minha mãe só não viu, e o destino bem traçou assim, uma de suas filhas (um de minhas irmãs), adoecer e partir. Em hospitais diferentes, minha mãe faleceria uma hora depois que a cirurgia de minha irmã terminava. E, meses adiante, quando minha irmã – no fim desse 2020 fatídico – falecia, minha mãe já era lembrança viva.
Os deuses e deusas pouparam minha mãe de sentir a que deve ser a maior dor de um ser vivente. Afinal, a missão de ser testemunha ocular da partida alheia encerrou-se, talvez por graça, antes que minha mãe pudesse ver uma de suas filhas terminar por aqui a sua rota. E, por assim ser, rotos os alfarrábios de sua trajetória, fechou minha mãe o livro da vida antes da chegada de más-novas. Morrer, nesse caso, talvez tenha sido para ela –quem sabe? – melhor do que ter ficado por aqui.
Assim pensando, vemos que o ano que há pouco chegou ao fim nos mostrou – como poucos anos na história recente do mundo, talvez só semelhante aos das Grandes Guerras – que ficar exige coragem. Isso porque, de alguma forma, ficar também é partir, pois quando ficamos vamos perdendo pelo caminho os que a roda do destino leva antes de nós e vamos nos distanciando às avessas do mundo que tínhamos. Por isso, ficar (é fato) exige coragem – talvez a mesma coragem de quem parte em viagem, porque ficar é viajar ao contrário.
Por isso, é inevitável pensar que –ante os mortos que se empilham nos cemitérios do Brasil e do mundo (vitimados por uma das mais severas pandemias que já se viu e por governos, como o do Brasil, que ninguém mais aguenta ver) –o sobreviver e o ficar que se aportam em nós (especialmente em alguns de nós, trágicos e nostálgicos como a minha mãe e os poetas) não deixam de ter em essência o sabor de um estranho privilégio. Sim. Ficamos. Ao menos até aqui. Mas partimos para dentro, na espera secreta e silenciosa do nosso próprio até quando.
Envelhecer tem assim também – mais do que as desvantagens explícitas – o estranho sabor desse estranho privilégio. Em todo caso, e se nos cabe beber dessa taça – doce e amarga como a dos ritos milenares – sorvamo-la com a alegria concisa-que-discreta que o momento exige e brindemos à vida, mesmo sabendo que somos apenas o hoje e o agora de um futuro que ainda não chegou (e, portanto, ainda não existe) e de um passado que, já distante, todo dia se despede.
Alê Bragion é um dos editores do Diário do Engenho.
(Crônica publicada também em “A Tribuna Piracicabana”).