Feche os olhos, ouça os ruídos inaudíveis do outro lado do universo,
coloque-os em versos, de pé quebrado e falsas rimas,
em que as palavras não façam sentido,
ore a um Deus desconhecido, corra, antes que chegue
o fim do mundo, que vai te pegar desprevenido,
porque você não ouviu a trombeta, muito ocupado estava
em brincar de ser adulto, e então você verá a arca
se encher de meninas e meninos, enquanto a água sobe
e te refresca a bunda, pra te lembrar que você perdeu o trem,
e ficou na estação medindo os trilhos, que você perdeu o balão,
soprando ar quente numa sala cheia de girinos,
todos bem encapotados, com as caras enfiadas nos livros,
adquiridos no último congresso de mais-do-mesmo,
onde se enfileiram as velhas e pisadas teorias, com suas aplicações gentis,
para prover o conforto da humanidade, refestelada em sofás de organdi,
ouvindo velhos discos de vinil, riscados, sem se importar
com o ir e vir das perguntas que passeiam no teto,
e esvoaçam ao redor da lâmpada, e queimam as asas,
e, morrendo, caem no cinzeiro, onde as aguardam as cinzas
do último cigarro do prisioneiro, antes de se levantar,
seguro e calmo, e seguir para o patíbulo, onde oferecerá sua cabeça
para a glória do alheio, do Nobel, do Papa,
do chefe dos escoteiros, ouça, meu amigo,
esse silêncio, que é a música das esferas,
com a qual Deus fala agora aos seus primeiros,
e a natureza canta aos primogênitos de cada raça,
aos seus filhos todos, na confusão do recreio,
enquanto se lambuzam as crianças, sem se preocupar
se vão chegar em último, em segundo ou em terceiro,
ouça, meu amigo, esse sussurro, único e derradeiro.
Tito Kehl é arquiteto, escritor e presbítero pela Ordem Hospitalar Sanjoanita. Autor de diversos livros, publicou em 2023 – pela editora Terra Redonda – o livro “Poemas ao Deus Desconhecido”.