Todas as cidade têm seus cantos secretos: ruas que se cruzam em momentos estranhos, lugares que surgem dependendo do estado de consciência de quem os encontra. Em Piracicaba, um desses espaços mágicos fica no cruzamento da Rosário com a Tiradentes. É uma pequena loja sem nome, com uma placa anunciando “Manuais, guias e tutorias sobre qualquer assunto imaginável”. Meu amigo Luís esteve lá.
Tinha que ser o Luís para descobrir uma esquina onde duas ruas paralelas se encontram! Acontece que ele bebe um pouquinho demais, gosta de escrever poesia, sonha acordado com frequência e, além disso, tem um punhado de parafusos soltos mesmo. Sua maluquice contagiosa afeta a cidade, que é louca por ele. A seu pedido, Piracicaba entrelaça suas ruas a seu redor, criando esquinas improváveis, como rede de proteção.
Quando a loja de manuais apareceu, Luís vinha de uma desilusão amorosa, a terceira do mês. Bebia e uivava pela rua, amaldiçoando essa “droga de vida, que vem sem manual de instruções”, essas “mulheres inexplicáveis do meu coração”. O jeito era morrer porque “Eu me recuso a viver num mundo sem manual!”, ele gritava. “Quero as regras do jogo agora! Agora! Ou desisto de brincar e pulo do tabuleiro da vida. Pulo direto pra frente de um carro.”
No cruzamento das paralelas, acenderam-se as luzes da loja. Um vendedor chamou “Por aqui, poeta! Temos guias, manuais, mapas, tutorias, impressos ou digitais, sobre o mundo e muito mais. Tudo isso a seu dispor. Entre e leia, por favor!” Luís entrou e desapareceu da cidade por um mês. Ninguém sabia dele.
Bombeiros procuravam seu corpo no rio, enquanto Luís, sempre na loja, fartava-se de ler e descobria que os manuais, por melhores que fossem, jamais dariam todas as respostas a tempo. Os guias simplificados eram fáceis de ler, mas desconsideravam as inúmeras variações possíveis na vida. Coisas simples podiam ter regras simples, como “As Normas da Corda Bamba – Primeiros Passos”, livreto que ele, desafiadoramente, pediu para ver, quando ainda duvidava que o vendedor pudesse apresentar-lhe manuais sobre qualquer matéria.
Assuntos complexos exigiam manuais igualmente complexos, que levariam a vida toda para ler e outra vida para entender. Luís era inteligente demais para dedicar-se a um tema só. Leu sobre a vida, o amor, o possível, o impossível. Misturou tudo na cabeça. Leu sobre organização de ideais. Lembrou-se de perguntar ao vendedor quanto pagaria pelo acesso a tantas informações. “Quase nada, poeta”, respondeu o vendedor, “você paga com seu tempo. O tempo que você passa aqui lendo sobre a vida é descontado do tempo que lhe resta a viver. É bem barato para quem pensava em saltar na frente de um carro, não acha?”
Cheio de dúvidas, Luís preferiu sair da loja. Mal pisou na calçada, mudou de ideia. Tentou voltar para dentro. Não conseguiu. O estabelecimento desaparecera. Em seu lugar, estava um posto de gasolina abandonado.
Luís só conta essa história quando bebe. Apresenta, como prova, anotações incompreensíveis sobre um suposto manual chamado “A Física e a Metafísica da Corda Bamba.”
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Carla Ceres é escritora.
Gostei da foto, Alê. Vou usar no meu blog também. Beijos!
Sensacional!
Exploraste de forma tão sublime essa tênue linha entre conto e crônica.
Um dos melhores texto que li nos últimos tempos.
Muito obrigada, Will! Um elogio seu vale muito porque você escreve bem demais. Abraço!
Olá, Carla.Adorei Carla! Perfeito o conto. Concordo com o Will! Deixei me levar no entre conto e crônica. Bjos!
Obrigada, minha linda! Fico feliz que tenha gostado. Beijos!
Ah! Carla… fascinante! Pensei na repaginação do Luís poeta! Depois de tanto buscar o manual do mundo com certeza elucidou-se! Improvável? Talvez… as esquinas!
Bj. Célia.
ÉEEE Carlinha, as vezes só bebados conseguimos passar pela vida kkkkkkkkk
Ameeeei de verdade o conto! Muito gostoo de ler!
Bjos
Então, um brinde aos leitores legais que gostaram e comentaram! Saúde, Camila! 🙂 Beijos!
Nossa, Carla, viajei junto com você, mestra na criatividade literária. E moro pertinho desse endereço… Quem sabe um dia eu entre nesse lugar insólito!
bjos
Muito obrigada, Ivana! Se esse lugar aparecer, segure a porta aberta e ligue pra mim. Também quero visitar. 🙂 Beijos!
Ótimo!!!!! Bjs.
Valeu!!!!! Beijos!
Carla, minha amiga
Chame-lhe crónica, chame-lhe conto… pode chamar-lhe o que quiser.
Para mim é um texto EXCELENTE!
Concordando com o comentário de Willmondes, também eu afirmo:
Um dos melhores textos que tenho lido nos últimos tempos.
Parabéns!
Um beijinho GRANDE
Muito obrigada, Mariazita! Vou já, já visitar seu blog e ler o “Mundo Paralelo”. Fiquei curiosa. Beijos!
No início da crônica, arregalei os olhos e pensei:”A Carla endoidou…Como assim, cruzamento da Rosário com a Tiradentes?” Juro que fiquei extática, pensando, pensando…Percorri, com o pensamento, as duas ruas para descobrir se nosso prefeito tinha conseguido tal feito, já que sua meta é embelezar a cidade e diga-se de passagem, cada vez está mais bonita… Seu texto também está lindo, Carla! Beijos!
rsrsrs Consegui prender a atenção de uma verdadeira piracicabana. Missão cumprida! 🙂 A cidade está mesmo cada vez mais bonita. Demos muita sorte com o prefeito atual. Fiquei feliz por você gostar do texto, Shirley. Beijos!
Pois é, também fiquei curiosa e querendo encontrar a rua, a loja, os manuais.
Ah, os manuais!!!!
Muito bom mesmo!
Beijos.
Então já somos três interessadas, Suzane. Vamos montar um grupo de busca. 🙂 Beijos e obrigada, querida!
Amei essa história! Acho que eu conheço essa loja… Minha bebida de acesso costuma ser a poesia.
Parabéns, Carla! Você é fantástica (literalmente)(literalmente de novo).
Obrigada, Regina Poetisa! Sem dúvida, seu talento lhe garante acesso a todos os mundos fantásticos. Beijos!
Leitura magnífica… Um mergulho tão profundo nessa mistura de realidade e ficção, de conto e crônica. Sem fôlego, digo apenas que acredito. Acredito no poder da leitura, da poesia, dessa lojinha aí que muitos sonharão em encontrar, no teu escrito, em toda essa arte. E vamos continuar: lendo teus textos, escrevendo mais textos e vivendo mais com os textos nessa vida “de cigana oblíqua e dissimulada” como nos disse Dom Casmurro… Grande abraço, de um jovem leitor e talvez futuro escritor!
Obrigada, Guilherme, futuro colega escritor! Você é muito gentil e já demonstra talento para as letras. Continue lendo e praticando. Beijos!