Entre prisões e perseguições: o golpe de 64 em Piracicaba

Entre prisões e perseguições: o golpe de 64 em Piracicaba

O fatídico regime militar instaurado no ano de 1964 contou com o apoio de diferentes grupos e pessoas. O governador de São Paulo, Adhemar de Barros, declarou, na época, que daria combate sem trégua aos comunistas, caçando-os onde estivessem em qualquer ponto do território nacional. Adhemar entrelaçou suas mãos com as de outros políticos, até mesmo com Juscelino Kubistchek, ex-presidente do país, e a imprensa, na incitação e apoio ao golpe civil-militar – movimento chamado de “revolução” por seus adeptos. No que diz respeito à imprensa, os casos mais emblemáticos foram o do jornal O Estado de São Paulo e A Tribuna da Imprensa. Esses periódicos não só apoiaram como também tomaram parte na conspiração golpista ao ajudar a desestabilizar e a desgastar a imagem do governo. Em Piracicaba, a grande imprensa – representada principalmente pelo Jornal de Piracicaba – seguiu o mesmo caminho do jornalismo da capital e apoiou a direita. Além dos veículos de comunicação, a Igreja Católica e outros grupos conservadores organizaram as Marchas da Família com Deus pela Liberdade – uma manifestação das forças hegemônicas que também ocorreu no município.

Ao lado de todos esses setores e personagens que apoiaram o movimento golpista desencadeado entre os meses de março e abril – alguns deles não compunham o espectro político da direita radical – estavam também operários e suas lideranças. Evidências sugerem que o meio sindical, particularmente dos metalúrgicos, em Piracicaba, apoiou o golpe civil-militar. Na década de 1980, uma matéria do jornal A Província, escrita por Cecílio Elias Netto, afirmou que: “em 1964, portanto, Piracicaba esteve ao lado da Revolução, até mesmo por seus líderes sindicalistas que a ela aderiram rapidamente…” No livro de atas de reuniões da diretoria do Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos de Piracicaba não constam reuniões em março de 1964, mês da primeira greve setorial dos metalúrgicos do município. A primeira reunião que tratou do Golpe de 1964 foi lavrada na ata de 26 de abril e sobre a greve foi feita referência na ata de 16 de maio. Nesses dias, os sindicalistas evidenciaram o forte anticomunismo compartilhado no interior do sindicato e a simpatia pela denominada “Revolução de 1964”.

O posicionamento conservador expressado pelos sindicalistas nesse documento não impediu que vários metalúrgicos, incluindo os diretores presentes na reunião lavrada na ata, sofressem com prisões, perseguições e outras arbitrariedades em 1964 e, é possível dizer, durante todo o período da ditadura militar. O metalúrgico Newton da Silva foi o primeiro a ser preso após o 31 de março. Ele foi colocado em uma cela e ficou incomunicável por nove dias. Na época, Newton tinha 30 anos de idade e tinha atuado como líder da primeira greve dos metalúrgicos. Ele foi preso junto com dois companheiros e sindicalistas metalúrgicos: Octavio Arthur e Luiz da Silveira Nunes. No dia 3 de abril, a exatamente um mês da greve, Newton contou que foi levado até a delegacia de polícia, onde foi submetido a uma verdadeira “sabatina” sobre as funções de um sindicato, pelo delegado Aldir Romano. Depois de quatro horas de interrogatório, foi colocado em uma cela conhecida como “pingo d’água”, espaço onde cabia apenas uma pessoa e no qual caia um pingo de água ininterruptamente sobre a cabeça. Nesse local, Newton afirmou que passou três longas horas.

Ao sair dessa cela, o metalúrgico foi direcionado para um cárcere comum com os dois outros companheiros sindicalistas, onde passaram a noite, segundo o seu relato, apenas de shorts. No dia 04 de abril, foram levados para Itirapina onde permaneceram por 9 dias sem qualquer comunicação e com pouca alimentação. O local, segundo o relato do operário, era um quarto pequeno, sem cama ou cobertor. A família não teve notícias e pela cidade circulavam boatos de que ele e os demais companheiros haviam sido jogados ao mar. A esposa de Newton estava grávida e a situação fez com que o bebê nascesse prematuro, de seis meses, e não resistisse. Em uma sexta-feira, os sindicalistas foram levados de volta para Piracicaba e colocados em uma cela com outros 70 presos políticos: “saímos de lá (Itirapina) mais magros, barbudos e graças ao Salgot Castillon” – disse em uma entrevista concedida ao Jornal de Piracicaba na década de 1990. Ainda segundo o metalúrgico, os policiais observaram que eles não eram da linha vermelha. Em suas palavras: “nossa linha sempre foi a de centro. Não gostávamos de comunistas nem da direita.”

Não foram poucos os operários e sindicalistas de Piracicaba que sofreram inquéritos policiais. No acervo do DEOPS há vários registros com os nomes dos perseguidos. É certo que os trabalhadores piracicabanos tinham uma forte consciência de classe! Dias antes do golpe, deflagraram a primeira greve dos metalúrgicos e paralisaram a maior empresa do setor, a Companhia Dedini, em busca de melhores salários e melhores condições de trabalho – a greve serviu como argumento da polícia para a perseguição dos partícipes durante a ditadura. Todavia, se o apoio dado a chamada “Revolução” custou caro a Adhemar e a Juscelino, ambos cassados durante o regime, e a outros políticos de centro e direita, o preço pago pelo movimento operário do país, incluindo nesse escopo os proletários e líderes do interior, foi ainda mais alto. É evidente que não era possível prever tudo que estaria por vir naquele efervescente ano de 1964, mas as sérias consequências geradas pelo descaso com o sistema democrático foram sentidas na pele e na vida, dia a dia, dos trabalhadores durante o processo do Golpe e nos 20 anos subsequentes.

 


Fabiana Junqueira é  mestre em História pela UNIFESP e doutoranda junto ao Programa de Pós-Graduação em História da UNICAMP. É autora do livro “Caipira, uni-vos”.

 

(Foto de capa: Março de 1964. Assembleia dos metalúrgicos em Piracicaba. Em pé, um dos líderes sindicais dos metalúrgicos da cidade junto a Francisco Salgot Castillon – então deputado estadual que havia sido prefeito de Piracicaba (de 1960 a 1962, quando se licenciou para concorrer ao legislativo paulista) e voltaria a estar à frente da prefeitura da cidade entre 1968 e 1969. Nessa assembleia se decidiu pela greve dos metalúrgicos  (greve abordada no texto) e que foi a primeira greve setorial dos metalúrgicos na cidade. Acervo Deops – Arquivo Público do Estado de São Paulo).

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