O existencialismo de Sartre nos coloca diante de um dilema irresolúvel: estamos condenados a sermos livres. Anátema filosófico, a benesse da liberdade transmuta-se em maldição na pena do filósofo, que nos traz à consciência a percepção de que a liberdade é risco do qual, queiramos ou não, não temos como escapar. Risco porque, ao reconhecermos que somos livres – mesmo sob a mais temerosa ditadura –, assumimos as rédeas de nossas ações, de nosso pensar, de nossa atuação em sociedade; e nos despimos da couraça protecional da qual costumeiramente nos revestimos toda vez que culpamos o outro pelas nossas atitudes e ações. Livres por natureza, vamos nos moldando ao longo do existir, fazendo prevalecer a premissa maior que aponta no humano a ausência de uma essência inata e pré-definida, uma vez que vamos esculpindo o nosso existir a partir de nossas escolhas e de nossas tomadas de decisões.
Partindo de Sarte, talvez possamos dizer que, nas sendas da formação de nossa existência, nos exercitamos – às vezes até com um grau elevado de prazer neurótico bastante Lacaniano – diariamente no jardim das relações humanas e – consciente ou inconscientemente – atuamos na defesa de nossas ideias, na realização de nossas vontades e na expectativa de erigirmos sobre o outro o castelo de nossas convicções. Na lida cotidiana do levantamento do muro de arrimo de nosso existir, todavia, revelam-se muitas vezes aos nossos olhos ranhuras e trincas, de baixo ou alto relevo, originadas pelas vibrações de nosso descompasso em relação ao que o outro nos propõe sobre o seu também particular – e livre – modo de ser, existir e pensar a existência; decorrendo daí a já clássica sentença sartreana que aponta que o inferno são ou outros.
É justamente diante do outro, porém, que oscilamos e vemos também o outro oscilar entre o humano e o desumano. É na peleja pela imposição de nossas certezas, suprimida nossa capacidade maior de autoavaliação, que desancamos o outro (ou somos desancados por ele) e intentamos sufocá-los (ou somos por ele sufocado) com a matéria de nossas verdades (ou das verdades do outro). Matamos ou morremos por nossas verdades – ou somos mortos pelas verdades do outro. Afastados os nortes que nos fazem seres humanos, oscilamos pendularmente entre o diabólico e o divino, entre o bem e o mal, sem ao menos – muitas vezes – nos darmos conta de tais quedas ou elevações (ao não ser quando, e voltemos de novo a Sarte, percebemos que o olhar do outro nos denuncia, nos aponta, nos insere, nos coisifica). Talvez só aí, nesse momento de “coisificação,” sintamos como o outro (ou como nos mesmos) nos coloca(mos), quase sempre, no lado B da vida, no lado B do humano.
Dito tudo isto, não podemos deixar de reconhecer que – morando num país que se diz de maioria (esmagadoramente) católica, evangélica ou espírita – a celebração (por parte de alguns brasileiros) da morte de Dona Marisa Letícia, esposa do ex-presidente Lula, se configura na vida desses cidadãos como a mais clássica descida aos infernos do existir, ao limbo do desumano, a vala comum da absoluta ignorância e decrepitude. Sob a mesma sentença, nosso olhar, livre, pode coisificar como imoral e inumano – nesse outro – a atitude (especialmente de um grupo de médicos!) de divulgar e tornar público laudos e exames particulares da então paciente Marisa Letícia, desejando e indicando numa rede social formas de lhe tolher definitivamente a vida.
Dentro da liberdade do existir, da maldita e ao mesmo tempo bendita liberdade do existir, podemos entender que, nesses seres que se dizem humanos, o humano – o demasiadamente humano – desfaleceu, perdeu-se, escorreu pelos dedos. Carrascos da liberdade do outro, esses “seres”, ao regozijarem-se com a dor daqueles que não pensam como eles, tornam-se excrementos da maldição de serem livres, dejetos expelidos pela culatra da existência, fossilizando-se como infernos particulares do outro, vampiros sempre ávidos e sedentos do sangue e da desgraça alheios. Acusadores, defensores e juízes de suas próprias causas, são incapazes de não proporcionar o pior dos exemplos para seus pares, criando um círculo quase inquebrantável de miséria intelectual e de ausência quase total de sentimentos.
Livres que somos, apenas só nos cabe agora o reconhecimento desse inferno alheio. Para que dele nos afastemos, sob a pena de perdemos também – se a esse inferno nos assemelharmos – a nossa própria, individualizada e já tão martirizada humanidade.
Alê Bragion é editor do Diário do Engenho.
Alê, mais uma vez você fala por nós! Obrigada!!!!