Os leitores de Saramago habituaram-se ao seu estilo em discurso indireto livre com características só dele: sem uso de pontos de interrogação e exclamação, com economia de pontos finais e generosa inserção de vírgulas (jamais de ponto e vírgula), com períodos longos e entrecortados. Este estilo tem elevado potencial para afugentar os leitores que buscam apenas “boas histórias” com que se entreter, assim entendidas as narrativas com começo, meio, fim, aventura ou suspense, um herói ou heroína, escritas em linguagem “corrente”. Mesmo o leitor mais propenso a se deleitar com os diferentes estilos e experimentações, precisa se habituar com o modo com que Saramago escreve para, então, conseguir seguir o fio da meada – numa primeira aproximação, isso pode exigir paciência e atenção por umas boas dezenas de páginas.
Mas o esforço compensa. Por trás dessa “armadura” textual, esconde-se, mas se insinua o tempo todo, durante a leitura, uma espécie de peninha sapeca, que faz cócegas na imaginação, levando ao riso. Ela se manifesta por meio do uso, até mesmo exagerado (sem atrapalhar, porém, muito pelo contrário) de ditos populares bastante conhecidos de todos que falam o português – eles aparecem em situações diversas, trazendo para a rua, para o vulgo, até mesmo a mais carrancuda discussão numa reunião ministerial ou um debate filosófico; ela, a peninha, também faz uso de chistes muito espirituosos, às vezes zombeteiros. Vale a pena dar alguns exemplos, no caso do Ensaio sobre a lucidez.
Da profusão de ditos populares, esta dezena de escolhidos a esmo, que poucos brasileiros devem desconhecer: “o sol, quando nasce, é para todos” (p. 44); “tudo que é mau, é obra do homem” (p. 45); “a esperança é como o sal, não alimenta, mas dá sabor ao pão” (p. 46); “mais valem quinhentos pássaros na mão que quinhentos e um a voar” (p. 49); “cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal” (p. 92); “só os grandes remédios são capazes de curar os grandes males” (p. 100-101); “cada um por si e os mais que se lixem” (p. 102), “quem faz um cesto fará um cento” (p. 247); “entalado entre a cruz e a caldeirinha” (p. 251); como elefante na loja de louças (p. 279).
Dos chistes, alguns dos mais engraçados, especialmente nos momentos da narrativa em que aparecem: “o restaurante que acabou por escolher, das três estrelas que a ementa prometia, só lhe pôs uma no prato” (p. 235); “estes tipos que têm um só olho veem a dobrar, não têm outro que o distraia ou que teime em ver outra coisa” (p. 261); “Não sabia que a memória ouve, É o segundo ouvido, o de fora só serve para levar o som para dentro” (p. 264); “não é correto dizer ex-mulher (…) dizer ex-mulher significaria que a mulher tinha deixado de o ser (…) Não, a mulher continua a ser mulher, o que deixou de ser foi esposa” (p. 267).
Uma singularidade do Ensaio sobre a lucidez é que, embora longa, a narrativa não conta com nenhum personagem com nome, afinal, como diz o comissário: “um nome não é mais que uma palavra, não explica nada sobre quem é a pessoa” (p.297). Os personagens são identificados pelos cargos que exercem (presidente, primeiro-ministro, ministro do interior, ministro da cultura etc.), pelas funções que desempenham (comissário, inspetor e agente da polícia; diretor e chefe da redação do jornal etc.), por elementos característicos (o tipo que escreveu a carta, a que não perdeu a visão, o de tampão no olho etc.). Espantosamente, este procedimento não dificulta ao leitor acompanhar a trama – sabe-se o tempo todo quem é quem.
Outra singularidade, mas de menor importância: os capítulos, dezenove, não são numerados.
Mas, afinal de contas, de que trata o Ensaio sobre a cegueira? Que história se conta neste livro provavelmente mais afamado que lido. Conta a inusitada situação vivida por um país (enfatiza o narrador onisciente, p. 94, que não se trata de Portugal) em que, depois de mais de oitenta por cento dos eleitores da capital terem optado pelo voto branco, obrigam o governo a realizar novo pleito, no qual o mesmo fenômeno se repete, aparentemente sem que tenha havido campanha ou articulação para que assim fosse. Em represália, o governo se retira da cidade e não permite que seus habitantes dela saiam.
Que criatividade, imaginar tal situação! Se bem que, na História de Portugal que se liga à do Brasil (e da França, via Napoleão Bonaparte), houve um rei que carregou consigo a corte de um país a outro, além-mar, não foi? Mas a criatividade de Saramago não para por aí. Contar o que acontece durante esse período de divórcio entre governantes e governados, com riqueza de eventos bem urdidos e eivado de detalhes, é o que ele faz, com espantosa combinação de seriedade sociológica e humor finíssimo.
Inicialmente os fatos têm a ver com o governo (instalado em uma nova capital), considerando-se suas reuniões, decisões, jogos internos de poder, sucessos e fracassos etc. Os debates em reuniões decisórias ou de trabalho dos governantes servem para flagrar – em admiráveis cenas e diálogos – contradições e insuficiências da democracia, além dos riscos que ela sempre corre, quotidianamente, inerentes à sua própria natureza ou decorrentes da baixa estatura moral ou da insuficiente capacidade daqueles que a colocam em funcionamento, desde os eleitores até os políticos, passando pelos burocratas de todos os escalões. Ninguém que tenha passado por experiência de governo, atuado na administração pública ou em partido político, ou que seja um cidadão minimamente atento, deixará de reconhecer que Saramago conseguiu, neste romance, explicar (em tom verdadeiramente ensaístico, mas profundamente literário) como funciona um governo e como este se relaciona com a sociedade, embora partindo de uma situação-limite. Imagine-se ter que lidar com eleitores cujo comportamento (votar massivamente em branco) inviabilizam as eleições como mecanismo de escolha dos governantes, mas que, ao fazerem isso, não estão cometendo nenhuma infração, delito ou crime, já que cada um deles têm o direito de votar como bem entende e, ainda por cima, sem qualquer obrigação de revelar o que fez com as cédulas que depositou nas urnas.
No final das contas, os governantes terão que lidar com o fato de que, na capital do país, o presidente e os parlamentares não foram eleitos e, então, não constituem o poder legitimado pelas urnas. Além da clara punição que impõem aos seus habitantes, abandonando-os (na infantil expectativa de que os “brancosos” se arrependeriam e os chamariam de volta), o presidente e o primeiro-ministro, com seu gabinete, consideram estar diante de uma sedição que, como tal, precisa ser enfrentada e derrotada. Por isso, um pouco depois do meio do romance (p. 195), começa uma verdadeira trama policial, de que surge o personagem principal do livro – o comissário (sem nome, embora numa hilária circunstância do romance seja chamado de Sr. Providencial). Ele e seus dois auxiliares vão à capital para investigações, mas logo se dão conta de que deles o que se espera é apenas um resultado: a identificação, a qualquer custo e com quaisquer meios, culpados (verdadeiros ou forjados) pela rebelião, a serem exemplarmente punidos. Como sempre acontece, então, ao afastarem-se os governos da democracia e adotarem políticas e procedimentos autoritários, política e polícia se amalgamam num só máquina desumana de exercício do poder. Como o romance foi escrito num tempo em que a imprensa (jornais, revistas), a televisão e o rádio ainda eram os meios de comunicação de massas não acuados pela internet e redes sociais, essas mídias fazem parte da história tal como a entendem os que as denominam o quarto poder (além do Executivo, do Legislativo e do Judiciário) – é nos jornais que desemboca a luta pela verdade a respeito do que o governo autoritário andou fazendo para se desvencilhar daqueles a quem chamou inimigos da democracia. Em meio a essa luta, o que acontece com a vida do detetive Providencial é algo, primeiro, alentador; depois, devastador.
Num golpe de mestre do romance na era dos intertextos, Saramago (a partir da p. 170), faz com que a suspeita de liderar o movimento “antidemocrático” dos optantes massivos pelo voto em branco (os “brancosos”) recaia sobre uma mulher que, no seu anterior Ensaio sobre a cegueira, era a única a não ter perdido a visão, encarregando-se de ajudar a quem podia; e tendo, nesse mesmo afã, assassinado o líder de uma quadrilha que oprimia e explorava a população privada da visão e, portanto, das condições de viver na normalidade. Quais as razões para esta suspeita? O que se concluiu com as investigações? Que medidas foram tomadas em decorrência delas? O que aconteceu com os detetives que as conduziram? Que conclusões tirar, acerca do pêndulo democracia-ditadura, tal como seu funcionamento é “explicado” no, além de tudo divertidíssimo, Ensaio sobre a lucidez? É ler e descobrir.
P.S.: Um trecho para exemplificar como Saramago consegue narrar sobre temas sérios e complicados (a tortura policial, por exemplo) com um humor que atinge as raias do lúdico pedagógico: “Posso ir-me embora, Que ideia a sua, homem, não se precipite, primeiro ainda terá que responder à pergunta que lhe tínhamos feito, Qual pergunta, Em que estava realmente a pensar quando disse ao seu amigo aquelas palavras, Já respondi, Dê-nos outra resposta, essa não serviu, Era a única que lhes podia dar porque é verdadeira, Isso é o que julga, Só se me puser a inventar, Faça-o, a nós não nos incomoda nada que invente as respostas que entender, com tempo e paciência, mais a aplicação adequada de certas técnicas, acabará por chegar à que pretendemos ouvir, Digam-me então qual é e acabemos com isso, Ah, não, assim não teria graça nenhuma, que ideia faz de nós, meu caro senhor, nós temos uma dignidade científica a respeitar, uma consciência profissional a defender, para nós é muito importante que sejamos capazes de demonstrar aos nossos superiores que merecemos o dinheiro que nos pagam e o pão que comemos, Estou perdido, Não tenha pressa.” (p. 32) Não seria o caso de ler este trecho para aqueles que se dizem e se comportam como defensores da tortura e do Estado policial, considerando Ustra um herói?
(Referência: SARAMAGO, J. Ensaio sobre a lucidez. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, 325 p.)
Valdemir Pires é economista e escritor.