A segunda década do século XXI deu ao brasileiro dois presentes simbólicos fundamentais: um GPS e um grande espelho. O primeiro situou o Brasil no mundo – revelando assim o lugar do país no plano mediado e traçado para ele por seus colonizadores atuais (ou você é daqueles que acredita no mito da Independência e celebra o 7 de setembro assistindo a paradas militares e a desfiles de cavaleiros vestidos à portuguesa?). O segundo mostrou ao povo sua verdadeira face, fajutamente amiga e (contrariamente ao que sempre se pregou) nada cordial. Calma, lá. Sem ofensas! Este cronista não foi tomado aqui por um ataque de viralatismo rodriguiano tupiniquim, não – como o leitor talvez possa supor (ainda mais se você, leitor, é dos que não perdem um bom desfile cívico e põe a mão direita no coração toda vez que usa aquela camisa amarelinha da CBF e ouve o hino nacional cantado a capela nos estádios). Tenha paciência. Minha tese é boa! E lê-la até o final pode ser um sinal de que você, leitor, tem o mesmo desejo que eu: o de contrariar a regra e escapar do mau-caratismo que nos funda e irmana.
Se nos vale de consolo, fato é que a vileza nacional não é descoberta recente – entranhando-se por aqui há mais de quinhentos anos. Em todo caso, não é também praga original da terra – nem muito menos descende daqueles que aqui viviam “primitivamente” antes da chegada da “civilização” (e, nesse caso, mais do que óbvias, as aspas usadas são sinais de ironia. É lógico!). O gosto pela crueza que nos constitui – embebida numa certa dose de sadismo – cruzou o Atlântico, vindo para cá pelas mais diversas rotas marítimas e embarcando em naus de procedência variadas. Vejam. Lá no XVII, por exemplo, o velho Padre Vieira – o céu da Língua Portuguesa, segundo Pessoa – já havia se apercebido que nesta terra, sendo fel, tudo dá. Talvez também por isso tenha ele levado a vida escrevendo sermões nos quais, por vezes, expõe a rudeza daqueles que – vindos da metrópole portuguesa – em solo brasileiro só viam uma forma de enriquecimento e exploração (valendo dizer, é claro, que ele próprio não era lá uma flor nascida na areia, não). Também nada florido nem angelical, e ainda lá pelo XVII, o nosso aclamado primeiro grande poeta – Gregório de Matos e Guerra – igualmente se cansou de fazer escrachos da torpeza luso-brasileira que em terras baianas se firmava (e nas quais se todos se esfalfavam sem “verdade,” “honra” e “vergonha”).
Na literatura, dentre as figuras deploravelmente tão brasileiras, Leonardinho – personagem de “Memórias de Um Sargento de Milícias”, de Manuel Antonio de Almeida – funda definitivamente a alma nacional. Filho de uma pisadela e de um beliscão, Leonardinho vai levar vida folgada e prazenteira – vivendo de malandragens e outros subterfúgios pouco apreciáveis até, um dia, virar um sargento! Ou seja, nosso primeiro grande herói nacional é, na verdade, um anti-herói – um boa-vida que, no fim das contas, é ainda aclamado e elevado à condição de detentor de patentes militares (já teria percebido Manoel Antonio de Almeida, lá no XIX, uma certa fixação de boa parte da nação por coturnos e fardas, o que até hoje nos traz sempre de volta o fantasma das ditaduras?). Pouco mais à frente que Leonardinho, o hoje já clássico Macunaíma definitivamente chancela a falta de caráter nacional como característica basilar de nossa gente querida (dessa vez deixei a ironia passar sem aspas). Macunaíma é, sem sombra de dúvidas, a cara do Brasil e do brasileiro: o anti-herói amado, preguiçoso e, claro, sem nenhum caráter.
Longe de tentar defender tese literária sobre o mau-caratismo brasileiro em poucas linhas, pulemos de nossos modelos ficcionais para o mundo dito real. No domingo anterior, dia 5, os estudantes brasileiros puderam viver mais uma dolorosa etapa de sua formação escolar: o ENEM. Dia de tensão para quem se submete à prova. Dia de apreensão para aqueles que, comprometidos mais diretamente ou não com o ensino no país, acompanham com cuidado o movimento estudantil em terras de Leonardinhos e Macunaímas. E, nesse cenário, qual não foi a novidade deste ano senão a de uma “célebre recepção acalourada” (e vamos de aspas novamente) destinada não àqueles que faziam a prova, mas para os que chegavam atrasados e davam com o nariz no portão fechado. Confetes, risos, palmas, torcida (contra), urros, gritos e até cartazes com dizeres emblemáticos (tais como: “eu sou um babaca”) eram destinados a quem, por motivos desconhecidos pelos demais, perdia a prova por chegar atrasado.
Em mais um domingo “santo,” Leonardinhos e Macunaímas, aos montes, espalharam-se assim por algumas escolas do país dispostos a comemorar a danação alheia. Sem querer suavizar o descompromisso de muitos alunos com o ENEM, me surpreende no entanto saber que grupos organizados dedicaram-se a esperar os atrasados para vibrar com sua infelicidade – sem minimamente procurar sem saber o motivo de tais atrasos e sem levar em consideração as condições sociais daqueles que, por conta dessa ou daquela infelicidade, perdiam a prova. Por isso, e acima de tudo, a torcida para que o outro quebra a cara e se dê mal é surpreendente reflexo da baixeza de sentimentos e de organização mental de muitos e muitos filhos deste chão cada vez mais gretado chamado Brasil. Que coisa. Entre Leonardinhos e Macunaímas, parece que por aqui ainda não vimos de tudo.
Como afirma sempre, jocosamente, o colunista Zé Simão, na Folha de São Paulo, de fato “o Brasil é lúdico”. Sim. O Brasil é lúdico e diabólico. Ave!
Alê Bragion é editor do Diário do Engenho.