Não é raro na história a utilização do imaginário religioso como estratégia para se alavancar poderes e promover a manutenção de sistemas políticos. A construção de mitos no campo político só fez fortalecer e emergir figuras nefastas, que marcaram negativamente a história.O culto à personalidade, centrado em visões messiânicas, tende a conduzir a governos autoritários, não comprometidos com processos políticos democráticos.
Mediante a apropriação de símbolos e representações religiosas, o discurso político quer se colocar em um patamar não humano, visando alcançar uma sustentação sagrada, como se determinada personalidade política fosse portadora de uma missão divina.É neste ponto que a religião se torna ópio, instrumento de manipulação a serviço de um poder que se quer inquestionável, com autoridade que vem dos céus. É intencional promover o desconhecimento de que a política – assim como a economia e mesmo a religião – é uma construção cultural, que expressa uma definida maneira histórica de se organizar a vida em sociedade.
O teólogo Santo Tomás de Aquino, na busca de conciliar fé e razão, elucida que quanto mais perfeição se manifestar em algo, mais próximo de Deus – que é a fonte de toda perfeição – este algo estará. Em outras palavras, um critério simples e razoável para se identificar que algo ou alguém vem de Deus consiste na identificação coerente com tudo que Deus revelou de si mesmo. A beleza percebida em uma flor, por exemplo, é uma evidente demonstração da existência da beleza eterna e absoluta, que é o próprio Deus.
O esforço de se conciliar a fé e a razão parece ter sido abandonado. As expressões de fé que vicejam no contemporâneo, ancoradas em uma perspectiva fundamentalista, não guardam nenhuma intersecção com compreensões racionais. Aliás, o anti-intelectualismo e o combate à ciência caminham, justamente, na contramão da construção de uma fé crítica, em diálogo com princípios racionalmente aceitáveis.
Retomando as ponderações teológicas de Tomás de Aquino, caso houvesse um determinado personagem político na condição de ungido divino, com uma missão sagrada, ele mesmo seria imago dei, um reflexo das características atribuídas a Deus. Ora, na tradição cristã, Deus se revela como amor, bondade, comunhão, solidariedade, fraternidade, serviço, generosidade, entrega, perdão. Na teologia apofática, poderíamos apontar ao menos o que não revelaria a presença do sagrado: o culto à violência; posturas carregadas de preconceitos; a insensibilidade em relação à condição do pobre; a defesa de uma exploração predatória do meio ambiente; a inexistência de atitudes de perdão etc.
Ao longo da história muitas atrocidades foram cometidas em nome de Deus. A transposição de concepções próprias do campo religioso para o universo político tem sido uma artimanha para se galgar poder, com resultados perversos para o conjunto da sociedade. No imaginário religioso, há um eterno duelo do bem contra o mal. Ser identificado como o escolhido de Deus, ao mesmo tempo em que se atribui ao rival político a personificação do mal, pode ser uma estratégia desleal, mas muito eficaz para a conquista do poder, especialmente em tempos de fundamentalismo religioso.
É preciso clareza e lucidez para se distinguir o jogo político de profecias religiosas.A religião contempla uma dimensão profunda da vida humana e não pode ser instrumentalizada para justificar pretensões autoritárias de neofascistas travestidos de messias. No campo político não se deve esperar por milagres, são fundamentais a participação e a luta por direitos. O fortalecimento da democracia se configura como o único caminho para a construção de uma sociedade ética, justa e solidária.
Adelino Francisco de Oliveira é doutor em filosofia e professor no Instituto Federal campus Piracicaba.
Pois é. Num dia vai a um culto evangélico. No outro consagra o país a uma Nossa Senhora. Usando e abusando da fé das pessoas.🤔