O ideário civilizatório não deixa de ser um projeto em aberto, que precisa ser assumido e renovado pelo conjunto da sociedade, correndo-se o sério risco de um retrocesso trágico e catastrófico, de maneira a levar a sociedade a sucumbir à barbárie, à violência generalizada. Há sempre uma possibilidade real de que toda arquitetura civilizacional seja colocada abaixo, por forças obscuras, partidárias dos interesses mais privados e excludentes, que podem emergir e se impor, a partir da exaltação da ignorância e dos discursos de ódio.
A decadência civilizacional acaba por se expressar na ascensão de um tipo de pensamento acrítico, incapaz de compreender a existência e a própria cultura em sua dimensão complexa. Ganham espaço o preconceito, a boçalidade, a truculência e o senso comum, a definirem um modo de existência e de compreensão política que sempre coloca o outro como o inimigo, que deve ser abatido e exterminado. Emerge um sujeito cheio de opiniões e pontos de vistas, a explicitar olhares estreitos e carentes de fundamentação sobre os mais diversos temas. Em suas análises sobram racismo, homofobia, xenofobia, aporofobia, machismo, misoginia, repúdio a expressões artísticas e toda sorte de preconceitos. O fundamentalismo destaca-se como o cerne da leitura de mundo desse sujeito alienado e carente de percepções éticas. Não somente o fundamentalismo religioso, mas também o político, o econômico, o cultural. Todo tipo de fundamentalismo, a vicejar como erva daninha, tomando corações e mentes.
Talvez a consequência mais direta da ação política dos sujeitos massificados seja a sustentação ideológica do neofascismo, como expressão de um mundo avesso a qualquer possibilidade de democracia, de justiça e intolerante com outras formas de pensamento e de arranjo existencial. A culminância de um ambiente cultural a fomentar o retorno de perspectivas fascistas, calcadas na mais sólida e contumaz ignorância acerca dos desdobramentos da própria história, pode implodir com o arcabouço civilizacional. Mas o neofascismo significa, sobretudo, a derrocada da civilização e a vitória da barbárie, na forma de sistemas violentos e totalitários, a suplantarem qualquer noção de direitos humanos, de justiça social e ambiental e mesmo de liberdade. O neofascismo, com sua violência generalizada, dirigida sobretudo aos mais pobres e à natureza, representa a negação aberta ao programa histórico dos direitos humanos.
Não esquecer, para que nunca mais se repita! O conhecimento histórico desvela-se como imprescindível para se conservar e se avançar enquanto cultura e civilização, na medida em que pode evitar a reedição de erros que marcaram o passado. A ignorância histórica não deixa de se constituir como um mal terrível, que pode colocar por terra toda uma construção cultural. Na mitologia grega o rio Léthê – que fluía nas profundezas inférteis do Hades – provocava, em quem bebesse de suas águas, a aflição do total esquecimento. Cabe à educação, em um sentido amplo, promover a Alétheia, a compreensão da verdade, não deixando ninguém alheio aos princípios éticos inegociáveis que definem e embasam o projeto civilizatório.
O movimento de reconstrução civilizacional – negando e suplantando todas as formas e expressões de barbárie – desvela-se como tarefa urgente e fundamental. É preciso recompor a utopia de um mundo livre e igualitário, sedimentado no programa dos direitos humanos, capaz de romper com os mecanismos de violência. É preciso ainda recuperar o ideário de um indivíduo autônomo, emancipado, singular, sensível e ilustrado, apto a pensar a existência, as relações humanas e a vida em sociedade em uma dimensão complexa, ética, ecológica, crítica, aberta e plural. Talvez essa seja a grande e imprescindível missão de nosso tempo. O que está em pauta é nada menos do que a própria concepção de cultura e humanidade.
Adelino Francisco de Oliveira é professor no Instituto Federal de São Paulo, campus Piracicaba.