Na prateleira da dispensa, talvez o amor pese para sempre dispensado, guardado feito bilhete não lido, feito mensagem comprida, pensada que esquecida do recado registrado.
Em alguma manhã sem pressa, talvez o amor um dia se dê de bandeja na mesa da sala, estirado num centro de renda bordado em linha trançada que é vida – vida que não se esgarça nem se abala.
Fogo aceso na cozinha, talvez o amor seja preparado como merenda, café passado na fé, como prenda, como forma de prender a quem se ama – mas com quem, sem querer, se faz contenda.
Aberta a gaveta da cômoda, talvez o amor, o cúmulo do amor acomodado, se acomode no tempo amado errado – cômodo sentir, mínimo achado, posto entre mesclas de dor, tesouras, barbantes, colas, segredos e papéis dobrados.
No quarto de tantos partos, de tantos tinos e desatinos projetados sem destinos, talvez o amor, desalinhado, seja assim um dia achado – clandestino – no fundo, seco porto, de um velho armário torto, todo roto e amassado.
Servo da memória, talvez o amor surja incapaz – como um velho acervo que ninguém quer mais e que a qualquer hora, na iminência do descarte eterno, alguém pergunta: “joga-se fora?” –e outro alguém responde: “tanto faz”.
Sobre a pia do banheiro, talvez o amor – inteiro úmido e sem gentilezas – escorra feito sabão pelo ralo enferrujado da incerteza de se ser ou não se ser amado.
Como uma taça de cristal, talvez o amor rebrilhe em cristaleiras antigas, ilhas de passado entre utensílios de intrigas, desejos de faqueiros de prata, sensuais jarras de vidro e xícaras de lembranças baratas.
Exausto, por fim, o amor talvez– se real e se existido – descanse apenas (quem diria?) num sofá, deitado em frente à televisão, sonhando (expectador e expectativa) o sonho de um dia (se houver tempo) ser ainda matéria viva.
Alexandre Bragion é editor do Diário do Engenho e autor do livro “Casa Burguesa Sem Chave”.