Ele é pesado, mas é meu irmão

Ele é pesado, mas é meu irmão

Ao ler a matéria sobre o vídeo do menino palestino carregando o irmãozinho nas costas, me veio a letrada música “He Ain’t Heavy, He’s My Brother” (Ele Não é Pesado, Ele é Meu Irmão),  e a lenda urbana (talvez seja uma lenda ou talvez uma delas, não sei) que a acompanha nas redes digitais: “Esta música foi inspirada em um fato que ocorreu na Escócia em 1880. Era uma noite de muita neve, um menino chegou a uma igreja. Carregava em suas costas uma criança ainda menor. Eles estavam quase congelados, cansados e muito famintos. Com pena, um religioso perguntou: “Como você conseguiu carregá-lo?” E o menino respondeu: “Ele não é pesado, ele é meu irmão”.

A Inteligência Artificial conta um pouco mais sobre a frase que teria inspirado a música, mas não importa. O que importa é que uma criança carregou outra menor, seu irmão. A música é de 1969, mas a matéria sobre o pequeno carregando o outro menor, é de agora: “A história por trás do vídeo viral do menino palestino carregando irmãozinho nas costas”, está no G1 de 29/9 – é de agora. Desta, extraio trechos: “Em meio ao caos e ao horror das pessoas que estão sendo forçadas a abandonar suas casas em Gaza, um menino pequeno e descalço foge desesperadamente carregando seu irmãozinho, com a voz embargada pelas lágrimas enquanto grita repetidamente: “ya ama”, que significa “mamãe””.

Jadoua, de 8 anos, carregou seu irmão Khaled, de 2 anos, por 10 km (!) e o “vídeo registra o momento em que as crianças fogem após serem separadas dos pais em meio a um bombardeio, após a ordem do exército de Israel para evacuar a Cidade de Gaza.”. 10 km. Só consigo imaginar o corpinho do irmão “ir pesando”, o peso do pé descalço, do desespero, da fome, da sede, da dor do não entender, da ausência dos pais e do que mais possa doer. Definitivamente não consigo imaginar como o corpinho não “iria pesando” e não me dou o direito de pretender tirar esse peso dos ombros do pequeno Jadoua, aceitando a letra/título da canção “Ele não é pesado, ele é meu irmão”. Não. Aceitar significaria, para mim, amenizar a culpa, condescender com os senhores da guerra, da indiferença– amenizar a violência por eles imposta, principalmente aos pequenos. Não, pequeno, o que torna imenso o que você fez foi justamente suportar, resistir ao “crescendo do peso”.

Mas que ao me emocionar com você –com seu irmãozinho sobre os ombros – eu não me esqueça das crianças do meu país, onde a cor da pele, o pé descalço, a fome, a sede, são presunção de culpa e não de dores e ausências. E que tampouco fiquem de fora do meu sentir os pequenos dos povos originários. E, por favor, por favor, que eu não esqueça das crianças do Sudão, onde a cor da pele (de novo)majoritariamente negra as relega ao esquecimento, veda-lhes as manchetes nos meios de comunicação, deixando-as sucumbir esquecidas em uma ou outra nota, na impotência de artigos como este. E das crianças da Ucrânia e de tantos outros países, “Jadouas” à sua maneira, seu modo – envelhecendo antes do tempo nos conflitos, nas fugas forçadas, com vozes embargadas pelas lágrimas enquanto gritam repetidamente “mamãe” – que também delas não me esqueça.

E, por último, alguma liberdade com os versos do Poetinha para concluir com um pedido: “Tende piedade das crianças que envelhecem sem infância, que tanto peso carregam, Senhor, que ninguém mais precisa tanto de alegria e serenidade”.

 


Sergio Oliveira Moraes, físico, docente aposentado da ESALQ /USP

(Fotografia Ilustrativa: Ahmed Akacha)

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