O Brasil atravessa um dos mais dramáticos momentos de sua história política. Há uma grande discórdia sobre a avaliação do presente e mais ainda quanto aos caminhos para superar esta perturbadora situação. Uma parte dos brasileiros, principalmente dos grupos dirigentes, prega que a solução para o país é um conjunto de medidas de austeridade na economia e autoritárias, e até ditatoriais, no campo social, cultural e educacional. Com isso, negam os históricos problemas sociais do país que são inquestionavelmente: a desigualdade, o racismo, a concentração propriedade da terra e da propriedade urbana, a opressão das mulheres e dos grupos LGBTIs, o massacre de indígenas, o abandono dos mais pobres e dos mais vulneráveis. Buscam passar leis para poder perseguir e silenciar os representantes destes grupos, gerando um novo entulho autoritário que nos atrapalhará por demasiado tempo. Exigem que os trabalhadores e os mais pobres abram mão de direitos e paguem a conta pela crise que estes mesmos grupos dirigentes criaram ao desestabilizar o país em função de seu inconformismo político e de sua submissão aos interesses estrangeiros.
Na educação, alguns têm a pretensão de eliminar os debates sociais, afirmando que toda análise da realidade brasileira assume um caráter partidário. Assim, ensinar que o Brasil disputa com o Paraguai o título de país com maior concentração da propriedade da terra no mundo deixa de ser um fato e passa a ser uma posição partidária. Mostrar aos estudantes que no Brasil os afrodescendentes têm condições de vida muito piores do que os eurodescendentes também deixaria de ser um horripilante fato para ser a ideia de um partido. Mostrar como os indígenas são cotidianamente discriminados e massacrados assume o caráter de declaração ideológica. Revelar os problemas ambientais, como o uso desmedido de agrotóxicos, o desmatamento, a poluição, o envenenamento dos rios e do ar, as políticas equivocadas, deixam de ser fatos para ser discurso de partido. Dizer que o Brasil é um dos países em que a taxa de homicídios da população LGBTI é elevadíssima seria igualmente uma distorção partidária. Informar as crianças e os jovens sobre fatos da vida sexual seria uma grave falta moral, preferindo deste modo que elas e eles aprendam sobre estes temas sozinhos, na rua, na televisão ou na internet. Debater as questões relativas aos gêneros traria um grave prejuízo para os estudantes, negando os seríssimos problemas de discriminação, segregação e violência de gênero existentes no país.
No passado, a humanidade já tomou medidas como estas quando, em função de crenças religiosas, afirmou que a terra era o centro do universo e plana. Perseguiram os opositores com métodos brutais e não foram punidos ou se desculparam pelos problemas causados. Ignoramos a história e, por isto, a repetimos de modo trágico.
Como professor universitário, como educador, e como coordenador do Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos – DIVERSITAS – da Universidade de São Paulo, sinto a necessidade de expressar minhas ideias sobre estes assuntos. O Brasil apenas perderá com o avanço destas leis e políticas que visam antes de tudo perseguir e eliminar opositores políticos e não possuem qualquer preocupação educacional verdadeira.
O feminismo, por exemplo, produziu um volume imenso de pesquisas, cujas conclusões são inequívocas, apontando a opressão das mulheres que ficam expostas à pobreza, aos salários mais baixos, à dupla ou tripla jornada de trabalho, são responsabilizadas pela criação dos filhos e das filhas, sofrem discriminação e são assediadas sexualmente no trabalho e na escola, além da violência doméstica. Negar estes problemas banindo da educação os debates não contribui para a resolução das questões. Outros países farão o contrário, debatendo os problemas e encontrando soluções que renovarão suas sociedades, melhorando a qualidade de vida de suas populações. Não devemos embarcar nestas propostas obscurantistas que só atrasarão o país. Precisamos ter coragem e reconhecer os problemas e os erros das políticas atuais, buscando autenticamente as melhores respostas para solucionar as questões de gênero e as questões sociais, combatendo privilégios injustos e perturbadores.
Opor-se ao debate das questões de gênero e das questões sociais em geral é simplesmente ser um mau líder, um péssimo exemplo para a juventude e é profundamente irresponsável.
A masculinidade hegemônica, machista, discriminatória e violenta, é uma enorme fonte de problemas não apenas para as mulheres, mas, também para os homens. As crianças, os adolescentes e os jovens precisam ser orientados sobre os perigos de uma masculinidade que para se afirmar precisa recorrer à intimidação, à violência, à bebida, à direção perigosa de veículos, ao abuso das mulheres e daqueles que não compartilham da sexualidade hegemônica. Há enormes custos de saúde, para a educação, para o convívio, para a segurança pública derivados desta masculinidade para ficar apenas em alguns campos onde ela causa graves danos.
Devemos combater a ignorância com conhecimento e sabedoria e não a estimular por meio de leis persecutórias e imbecilizantes. A educação tem duas tarefas fundamentais: 1ª) fornecer às novas gerações os instrumentos teóricos para compreender e organizar o mundo; 2ª) oferecer a compreensão para um convívio democrático e harmonioso em sociedade. Portanto, a educação não pode ser apenas técnica porque, se assim for, ela deixará de fora aspectos fundamentais para a formação das pessoas. A educação não pode esquecer-se nunca do convívio, da solidariedade, dos valores sociais, que são as bases da vida em sociedade.
Precisamos nos decidir por uma educação solidária e democrática e desistir, de uma vez por todas, de um ensino mutilado e manipulador, que nem merece o título de educação. Na verdade, já decidimos na Constituição Brasileira de 1988 e na LDB por uma educação democrática e solidária, devemos reafirmar nossos compromissos com estas conquistas e avançar.
A educação deveria, por exemplo, incorporar e valorizar os conhecimentos e as contribuições das culturas indígenas, africanas e tradicionais, buscando desta forma contribuir para a redução das desigualdades e do racismo que tanto nos inferioriza.
Os reais problemas da educação no Brasil não são de ordem moral ou partidária, mas a falta de recursos e de investimentos, a formação precária dos docentes, a baixa qualidade dos materiais e das atividades, a deterioração das escolas, a falta de vagas em certas áreas, a administração deficiente, o esvaziamento do compromisso dos adultos com a formação dos novos brasileiros que resultam no desinteresse dos estudantes pela educação.
Precisamos ensinar a solidariedade e a democracia para as novas gerações, mostrando que somos solidários e democráticos.
Alguns querem acabar com a educação física para poder construir escolas em terrenos menores, sem quadras, sacrificando o bem-estar, a saúde e o desenvolvimento das crianças e dos jovens. Eu estudei em uma escola pública que ocupava um quarteirão inteiro e que possuía duas quadras e muito espaço para as crianças. O Brasil daquela época era muito mais pobre do que o Brasil de hoje. Portanto, podemos encontrar os recursos, se assim o quisermos. Não podemos permitir que, em nome do pagamento de exorbitantes juros aos bancos, a educação, a saúde e a nossa dignidade sejam destruídas ou aviltadas. Não podemos substituir um Estado com compromissos sociais por um Estado que não educa, nem forma as cidadãs e os cidadãos e depois pune, criminalizando os mais pobres. Precisamos de um Estado solidário e não de um Estado punitivo e fascista.
Portanto, defendo um posicionamento intransigente contra as leis e as políticas que aviltam a educação e um comprometimento com uma educação pública de qualidade que ofereça às novas gerações uma oportunidade verdadeira de se formar e de se tornar cidadãs e cidadãos produtivos, criativos, dignos e felizes. Cidadãs e cidadãos profundamente voltados para um convívio democrático que resulte em menos violência e em mais igualdade, justiça e solidariedade. Precisamos construir nossas identidades e os nossos conhecimentos com os outros e não contra os outros.
(Texto apresentado na Tribuna Popular da Câmara de Vereadores de Piracicaba, em sessão do dia 28/05/2018).
Antonio Almeida é professor da Universidade de São Paulo – Esalq-USP.