E teve Brasil no tapete vermelho.

E teve Brasil no tapete vermelho.

Assim como Petra Costa, eu também tenho trinta e poucos anos e, portanto, também tenho quase a mesma idade que a democracia brasileira. Meu primeiro voto também foi no PT e, de algum modo, eu depositei nas urnas as mesmas esperanças que ela. Também sou mineira, mas minha família, ao contrário da família de Petra, é de origem humilde, meu sobrenome não está gravado em placas de inauguração de grandes obras públicas Brasil afora.

Enquanto os pais de Petra estiveram diretamente na luta contra a ditadura militar, meus pais – que são mais novos que os dela – estavam crescendo na roça, distantes e alheios ao que se passava no Brasil, como muitos outros brasileiros. Eu faço parte daquela parcela da população que teve sua vida modificada pelas políticas públicas dos governos petistas. O meu desencanto com o PT talvez tenha sido um pouco maior do que o de Petra, mas, assim como ela, nunca perdi de vista todos os resultados positivos dos governos petistas. No entanto, para mim, em nenhuma medida esses resultados, que não foram poucos, podem justificar ou amenizar os erros que o partido cometeu. E não estou acusando Petra de ter justificado ou defendido o PT ou seus membros em seu documentário.

 Democracia em vertigem traz uma narrativa que não pretende ser neutra nem imparcial. A narrativa em primeira pessoa, a relação afetiva da narradora-protagonista-diretora com a democracia brasileira deixam claro desde o início qual é o lugar de fala de Petra. Estamos diante de uma leitura dos fatos ocorridos no presente e no passado recente do país que traz consigo uma forte carga emocional, que é resultante de uma imersão na história recente e na crônica do cotidiano e que busca compreender o que está acontecendo com a nossa jovem democracia. O temor de Petra é o de muitos de nós: tememos que nossa democracia tenha sido apenas um sonho efêmero.

Petra e eu, e todos os brasileiros que estão com seus trinta e poucos anos, crescemos num Brasil democrático, pelo menos era o que diziam as nossas leis, as nossas instituições. Talvez muitos de nós tenhamos ‘naturalizado’ a democracia, não pensávamos que teríamos que lutar por ela, pois ela já estava conquistada, era só uma questão de ampliá-la. Os governos petistas do início dos anos 2000 e suas políticas sociais que retiraram milhões de brasileiros da miséria contribuíram para aumentar aquela nossa crença, o Brasil finalmente caminhava para consolidar a democracia.

As políticas de cotas raciais, a expansão de vagas nas Universidades Públicas e as bolsas nas Universidades Privadas foram responsáveis por colocar pela primeira vez no ensino superior os filhos da classe trabalhadora. A inclusão pela via do consumo, a expansão do crédito, as políticas de redução de IPI acabaram por elevar milhares de brasileiros à categoria de cidadãos. Uma cidadania deformada, é verdade, porque era-se mais consumidor que mesmo cidadão. Mas enquanto todas essas transformações aconteciam, em Brasília o PT se viu enredado com as mesmas práticas que combatia, de mãos dadas com partidões fisiológicos, raposas velhas conhecidas de todos. Não demorou e as notícias sobre esquemas de corrupção envolvendo figuras chaves do PT estouraram. 

Se o PT errou – como eu julgo que errou – nas suas estratégias e nas suas escolhas, é preciso ser honesto e dizer que não é do PT o mérito pela invenção da corrupção, pelo início de relações espúrias entre partidos e empresários – como fica evidente no documentário, a relação íntima entre as empreiteiras e os partidos é mais velha do que a democracia, anterior a fundação do PT e permeou todos os governos, independentemente da coloração ideológica, depois da redemocratização. 

Nesse caso, o erro do PT foi o de aceitar fazer parte do que já era uma tradição no país. Se Lula é dono de um carisma que lhe permitiu costurar acordos da esquerda à direita e garantir uma política de conciliação,  sua sucessora não tinha a mesma virtude (ou seria vício?). E o vice de Dilma, escolhido por Lula para garantir a governabilidade, era ainda menos carismático, estava deslocado na cena, como mostra Petra, de escanteio, estava lá, mas era como se não estivesse. No entanto, como hoje é de conhecimento de todos, Michel Temer era dono de uma capacidade de articulação política que não fazia parte das virtudes de Dilma e que certamente foi subestimada pelo PT, outro erro de estratégia, talvez. 

Mas o objetivo de Petra não é apontar os erros do PT, nem tentar escondê-los ou apagá-los. Em Democracia em Vertigem somos convidados a nos olhar no espelho, a encarar um país partido ao meio, dividido por uma simbólica barreira erguida em Brasília para separar manifestantes pró e contra impeachment. Petra busca compreender essa cisão no tecido social, cisão que se faz presente também no interior de sua família, e que acabou por se mostrar uma fissura na própria democracia. Aécio Neves, que não soube aceitar a derrota nas urnas, optou por colocar em questão às regras do jogo democrático e ao fazer isso despertou forças obscuras que não poderiam ser controladas pelos velhos partidos e seus líderes, que acabaram reféns e alvos nas ruas e nas redes sociais.

O ódio e a violência aos poucos passaram a fazer parte do dia a dia dos brasileiros que batiam panelas, que vestiam a camisa da seleção e se indignavam nas ruas e praças contra a corrupção, embalados por hits que mais lembravam o carnaval do que uma manifestação política. A ponto de uma manifestante pró-impeachment na paulista comemorar a prisão de um ‘inimigo’. E quando questionada sobre o que  ele teria feito para ser preso, ela não hesitou: “não sei, é petista”. De repente, ser petista, ou de esquerda, virou motivo ou justificativa para que alguém fosse preso ou agredido. 

A narrativa de Petra é agoniante, causa vertigem no espectador. Sua voz melancólica, suave, acompanhada das imagens de confronto, das falas cada vez mais agressivas, da desfaçatez de agentes políticos que mudam e ajustam seus discursos de acordo com a conveniência da situação, nos dão náusea. Reviver o fatídico dia 17 de abril de 2016 é quase uma sessão de tortura. Nos bastidores, uma mistura de briga de torcida permeada por cultos e referências religiosas; diante das câmeras, a hipocrisia e o total desrespeito pelo Estado Laico e pelo Estado de Direito.

Os votos que aprovaram a abertura do processo de impeachment foram feitos basicamente em nome da família e de Deus – e, nesse dia, o Brasil se perdeu de vez. Mas isso não deveria nos assustar, afinal, como nos diz Petra, somos uma República de famílias: umas controlam as mídias, outras o ferro, outras o cimento, outras a terra. Também a violência, a intolerância e a ignorância personificadas na figura do então deputado Jair Bolsonaro, que elogiou um torturador diante das câmeras na presença de 513 deputados e saiu do Congresso Nacional como se nada tivesse acontecido, não eram bem novidades. Talvez por muito tempo boa parte de nós tenha escolhido ignorar tudo isso. Mas enquanto ignorávamos, todos esses sentimentos e muitos outros foram crescendo e não nos demos conta. 

Cena após cena, Democracia em Vertigem traz diante de nossos olhos velhos e novos personagens que conscientes ou não foram minando a democracia brasileira. A espetacularização das ações da Lava-Jato – conduções coercitivas injustificáveis como foi a de Lula – e do Judiciário – de decisões que teriam impactos relevantes na vida pública – foram aos poucos aproximando o cotidiano da política brasileira de uma obra de ficção, cheia de reviravoltas, com aqueles acontecimentos bombásticos nos últimos minutos do capítulo. De repente estávamos buscando nas páginas dos jornais a continuação, dormíamos e acordávamos com a angústia deixada pela promessa das cenas dos próximos capítulos.

Tudo isso fez com que realidade e ficção se confundissem na cabeça de boa parte da população. Os fatos eram obscurecidos pelas narrativas que eram televisionadas. E antes mesmo de conhecer os fatos já estávamos convencidos da interpretação do Jornal Nacional sobre eles. Isso deve ajudar a entender um pouco a reação de uma parte da população ao documentário de Petra, uma vez que sua narrativa põe em xeque a narrativa hegemônica que foi repetida durante os últimos anos em horário nobre. 

Dizer que a narrativa de Petra é ficcional foi a maneira encontrada por seus críticos de desqualificarem sua leitura e sua obra. A indicação de Democracia em Vertigem para representar o Brasil no Oscar na categoria documentário gerou uma enxurrada de acusações contra a diretora – de que ela teria sido parcial, de que seria petista, enfim, de que sua narrativa estaria contaminada. Mas é preciso colocar as coisas no seu devido lugar.

O gênero documentário não é uma modalidade de jornalismo, portanto não podemos cobrar do documentarista que seja imparcial, que se limite a relatar os fatos. O documentário é uma produção cuja principal característica é partir dos fatos, da realidade e, a partir dela, construir uma narrativa não-ficcional. Tudo isso Petra faz de maneira sensível e atenta aos detalhes que passaram despercebidos aos jornais: um vice que não se encaixava na foto, uma presidente que foi ‘inventada’ por seu antecessor, uma relação nada republicana entre empreiteiras e políticos que nasce ainda na ditadura, a desconexão do maior partido de esquerda com o povo mais simples, o porteiro, a faxineira. Com sua câmera, Petra captou também o ódio, o ressentimento, o medo das perdas de privilégios e a hipocrisia de tantos brasileiros, anônimos ou pessoas públicas, que sim, tinham e ainda têm bandido de estimação.

Não foi dessa vez que trouxemos a estatueta do Oscar para casa, mas é preciso reconhecer os méritos de Democracia em Vertigem. Embora com destaque para as cores locais do fenômeno, Petra dialoga com um público mais amplo quando fala das ameaças que a democracia sofre hoje. O fio condutor da narrativa de Petra segue os passos de outras obras que chegaram até nós nos últimos anos: historiadores, filósofos, sociólogos tentando entender o que está acontecendo com a democracia no mundo – será que ela corre perigo? Como morrem as democracias (Steven Levitsky, Daniel Ziblatt), O povo contra a democracia (YaschaMounk)e Ruptura (Manuel Castells)são exemplos de tentativas de entender o que está acontecendo nos EUA, na Hungria, na Turquia, na Venezuela, no Brasil.

Petra não é cientista, é cineasta e, como tal, lança mão de ferramentas próprias do cinema, da arte. Ao fazer um paralelo entre sua própria história pessoal e familiar e a história da democracia brasileira, Petra não pretende nos enganar. A realidade objetiva, os fatos que ela seleciona para nos mostrar, são interpretados a partir de sentimentos e emoções subjetivos que, de outro modo, se fazem presente em qualquer exercício de leitura e interpretação de uma realidade. Não podemos cobrar de Petra, da cineasta, aquilo que seria esperado de um jornalista ou de um cientista, e que, tantas vezes nos últimos anos, nem mesmo os jornalistas fizeram e, talvez, por isso mesmo, tantas pessoas tenham dificuldade nesse momento em avaliar um documentário pelo que ele é: um documentário.

Francine Ribeiro é filósofa e professora no Instituto Federal campus Capivari.

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Democracia em Vertigem

Ano de lançamento: 2019

Direção: Petra Costa

Disponível: Netflix

Indicado ao Oscar 2020 – categoria melhor documentário de longa-metragem

* Uma versão deste texto, anterior ao resultado do Oscar, foi publicada no blog Mineirices com o título “E o Oscar vai para…”.

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