Neste final de semana – certamente em função da imediata repercussão e da forte pressão de entidades da sociedade civil – a direção da Escola Vladimir Herzog, de São Bernardo do Campo, desistiu da tentativa de integrar a escola ao programa de escolas cívico-militares proposto pelo governo de São Paulo. A indignação contra a indicação dessa escola à proposta de torná-la uma escola cívico-militar foi generalizada no país, pelo absurdo de que ideia se configura. O filho de Herzog chegou a postar nas redes sociais: “Lugar de militar é nos quartéis, não nas escolas. A família Herzog protesta fortemente em relação ao projeto de tornar a Escola Estadual Jornalista Vladimir Herzog uma escola civil-militar. Caso o projeto caminhe, iremos tomar as medidas cabíveis para que o nome do meu pai não se associe a esta atrocidade”.
Em Piracicaba, nada menos do que OITO unidades da rede estadual inscreveram-se para implantação do Programa Escola Cívico-Militar – são elas: Elias de Mello Ayres, José Romão, Abigail de Azevedo Grillo, Jethro Vaz de Toledo, Edson Rontani, João Chiarini, Juracy de Mello Ferraciu e D. Eduardo Koaik. Todas essas unidades deverão realizar consulta pública com suas comunidades no período de 1 a 15 de agosto – o que deverá acontecer via votação através da Secretaria Escolar Digital (SED), segundo publicação do Diário Oficial do Estado no último dia 18. Diante desse fato, ficam as questões: quem realmente decidiu que incluir-se no programa era de interesse de cada uma dessas escolas? Quanto e quando comunidade de alunos de cada uma dessas escolas será informada que a transformação da escola em unidade cívico-militar poderá alterá-la? Quanto a comunidade terá acesso a esse sistema de consulta? O quanto haverá de tempo para que haja algum tipo de reação mais organizada?
COMO REAGIRIAM CHIARINI E KOAIK?
A provocação que parece envolver o programa – recolocando militares em espaços de influência formal de crianças e adolescentes – se amplia justamente em função de algumas unidades hoje levarem o nome de notórios defensores da democracia, que jamais admitiriam sua vinculação a tal iniciativa.
No caso de Piracicaba destacam-se dois personagens: João Chiarini e Dom Eduardo Koaik.
João Chiarini (1919-1988) foi taxado como notório comunista nos anos 50, figurando em todas as listas dos órgãos de repressão. Fundador do Centro de Cultura, animador cultural em épocas em que esse tipo de militância não acontecia com frequência, seu prontuário, no DEOPS- SP, assim o identifica: “líder e simpatizante do comunismo na cidade de Piracicaba. EM 1946 foi acusado de incentivar uma greve aos operários da Fábrica de Tecidos Acetuzina (sic). Em 1947, foi considerado elemento comunista ligado ao PSB. Em 1948 registrou-se que distribuía boletins assinados por Luis Carlos Prestes. Em 1949, foi procurado em Piracicaba por intelectuais como Caio Prado”. Boa parte de sua militância encontra-se em arquivo pessoal riquíssimo, que foi legado ao Centro Cultural Martha Watts, aberto à consulta pública enquanto o espaço ainda funcionava.
O segundo personagem é o bispo católico D. Eduardo Koaik (1926-2012). Embora tenha se mantido mais discreto depois de sua nomeação como bispo de Piracicaba, em 1979, D. Eduardo foi firme opositor da ditadura militar, especialmente enquanto ainda vivia no Rio de Janeiro. Dos próprios militares, naqueles anos, chegou a ouvir a pergunta: “Mas o senhor ainda não foi preso?” Com grande participação no movimento da Ação Católica nos anos 60, envolveu-se na rede de proteção e acompanhamento de refugiados políticos, inclusive perseguidos e torturados. Já nos anos 70, aproximou-se de religiosos uruguaios, viabilizando rotas de saída do para os perseguidos da ditadura militar brasileira. Em 1968 chegou mesmo a enfrentar um general para garantir a realização de um missa por estudante morto em protestos no Rio de Janeiro – a capela estava sob sua responsabilidade. Em muitos inquéritos militares, D. Eduardo aparece como testemunha de defesa dos acusados e não são poucos os depoimentos de figuras de importância nacional falando do apoio que dele receberam, como Frei Betto e Chico Alencar.
É possível que a escolas que levam os nomes de João Chiarini e D. Eduardo sequer saibam que ambos tiveram lutas tão explícitas e assumidas contra os militares. Talvez nelas exista apenas uma daquelas biografias oficiais que pouco dizem. Talvez seja uma boa oportunidade para estudar quem eles foram – e, naturalmente, afastar de vez esse absurdo de vincular tais unidades educacionais a qualquer projeto de cunho militar.
HORA DE REAGIR – PIRACICABA É A QUARTA CIDADE DO ESTADO EM NÚMERO DE ESCOLAS QUE QUEREM ADOTAR O PROGRAMA CÍVICO-MILITAR
É possível deter o processo de transformar unidades escolares comuns em escolas cívico-militares em Piracicaba? Sim, é possível. Com pressão, com apoio da mídia local, com muita conversa com as famílias de alunos, com a consciência dos professores que serão os primeiros afetados pela mudança.
A nota distribuída pela direção da Escola Vladimir Herzog (e que aparece ao final deste texto) e que é centro de indignação pela decisão inicial de inscrever a escola para se habilitar para o programa oferecido pelo Estado de São Paulo, mostra o quanto é possível reverter essa manipulação que vem sendo articulada pela direita com toda força.
Piracicaba está diante dessa encruzilhada, cuja responsabilidade inicial é dos diretores/diretoras que se dispuseram a ver suas escolas qualificadas para a mudança. Se você conhece algum deles, procure-os, converse, tente entender porque agiram assim. E se você conhece alunos e familiares destas unidades, também não se cale. É preciso reagir antes que os militares cheguem também nos espaços de educação, totalmente descaracterizados por sua pedagogia de obedecer, não questionar, não deixar pensar.
O que aconteceu em São Bernardo é o melhor exemplo de que a participação popular é o melhor caminho para se evitar retrocessos.
Beatriz Vicentini é jornalista.
(Imagem de capa: João Chiarini, acervo Martha Watts).
Uma boa notícia no enfrentamento a essa situação. Segundo a FolhaPress, “Um grupo de promotores e defensores públicos protocolou, na última sexta-feira (19), uma ação civil pública para pedir a anulação da resolução do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) que cria o Programa Escola Cívico-Militar, publicada em 20 de junho. Segundo integrantes do Geduc (Grupo Especial de Atuação de Educação do Ministério Público de São Paulo) e do Núcleo Especializado da Infância e Juventude da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, a resolução é irregular por invadir a competência do Legislativo, o que desrespeita regras da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, além dos Planos Nacional e Estadual de Educação.”