E caminho sob a chuva, como um personagem imaginário

E caminho sob a chuva, como um personagem imaginário

Os jornais veiculam todo tipo de notícias, um despropósito,
como se fosse de propósito para nos deixar expostos
a esse vendaval histérico, em que homens se digladiam
e matam suas esposas e filhas, para que não tenham orgasmos,
em que negros são pisados, porque sim, porque não,
porque é preciso pisá-los, assim como gays, ou qualquer um
que pisque para o outro lado, e evangélicos nos ameaçam
com seu Jesus imaginário, enquanto confundem
o Israel de carne do Antigo Testamento
com aquele outro, espiritual, de que falou Paulo,

e, em meio a tanta insensatez, ainda ouvimos
a voz trêmula do papa, como a dizer, “veja bem”, e sabemos
que a essas palavras sempre se seguem discursos
para normalizar a matança e desbaratar a resistência
de uns poucos que tentam defender as crianças de Gaza,
e o mundo olha indiferente, entre coquetéis molotov
e rabos-de-galo, servidos

entre as gargalhadas daqueles que se divertem,
fazendo piada dos desgraçados, dos que mais precisam
de um braço esticado, para tirá-los do isolamento
existencial em meio a uma sociedade de perfeitos,
ou supostos tais, e tudo isso, você sabe tão bem quanto eu,
não passa de um circo de horrores, para o qual
pagamos entrada com os nossos medos e nossos pecados,

com nossa falta de fé num futuro, em Deus, na humanidade,
na nossa incapacidade de imaginarmos a redenção da espécie humana
que não seja pela opção política do “venha para o nosso lado”,
e por isso estou exausto, estou verdadeiramente cansado,
e descrente de tudo, e me refugio no que me resta de senso,

e caminho sob a chuva, como um personagem imaginário, e bebo as gotas,
e olho para dentro de mim, em busca do Espírito,
que me dê a transcendência,
embora eu ainda ande por esse mundo, na falta de outro,
e ainda me compadeça, e que o sofrimento me doa,
e que minh’alma sofra, mas meus limitem começam
na fronteira onde começa ou termina o razoável, e essa chuva
sobre a minha cabeça, me leva para um longe
que há aqui bem perto,

e me despeço, contando com seu perdão,
mas perdi a paciência, e minha fé em Clark Kent, no Homem-Aranha
e no super homem de Goethe, eu a quero de volta,
obrigado e passem bem, nos vemos em outra hora.

 


Tito Kehl é arquiteto, escritor e presbítero pela Ordem Hospitalar Sanjoanita. Autor de diversos livros, publicou em 2023 – pela editora Terra Redonda – o livro “Poemas ao Deus Desconhecido”.

One thought on “E caminho sob a chuva, como um personagem imaginário

  1. Resistir há que, para não cairmos , prematuramente , no poço sem fundo da indiferença, que nos tira as últimas fibras de humanidade .

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