É a Ceia, Santa?

É a Ceia, Santa?

“O poder requer corpos tristes. O poder necessita da tristeza porque consegue dominá-la. A alegria portanto é resistência, porque ela não se rende. A alegria como potência de vida nos leva a lugares onde a tristeza nunca nos levaria.”

(Gilles Deleuze)

Gosto da expressão “despertar a fúria”,
porque ela implica que a fúria estava apenas adormecida,
assim como a ira, que “se levanta”,
ou a cólera, que “é provocada”,
em suma, sentimentos que não deviam existir,
mas que existem, em estado de latência,
aguardando apenas pelo momento em que se ergam
e provoquem o maior estrago possível ao seu redor,
ao cenário e à ambiência,

sob a justa justificativa da blasfêmia, essa outra irmã bastarda
expulsa de casa pela decência, que vaga pelas ruas,
sem compreender seu pecado, pois é acusada de quase tudo
o que desagrada a certos setores da audiência,
por ofender o infinito com suas caricaturas de demência,
por melindrar a um deus tão pequenino, que é maculado
pela menor coisa, mesmo a incompreensão
de suas majestade e potência (que ele próprio nunca pediu,
mas lhe foram atribuídas por homens, muito zelosos de si na sua ausência),

como se fosse preciso uma ordem unida, para que,
mesmo sem entender nada, sigamos todos em frente,
repetindo todos a mesma ladainha, como alunos
de um colégio todo feito de iguais, onde os diferentes
não tenham lugar, onde quem pergunta não encontra eco,
onde quem contesta é tratado, não como quem quer saber mais,
mas como quem coloca em dúvida os postulados da suposta gente honesta e sua ciência,

aquela mesma, que mataria, se pudesse, como matou
a quem não tivesse a famosa fé, que consiste em crer
sem que se dê a menor dica do que acontece, aconteceu,
– ou mesmo acontecesse, se pudesse -,
apenas crer, porque lhe disseram creia, porque isso lhe faz melhor,
porque, crendo, aceitarias o que quer que te dissessem,
e te constituirias, assim, em mais um arauto da continuidade
de uma doutrina que já ninguém compreende,

porque nunca foi “doutrina”, do modo como os homens entendem,
mas uma outra proposta, calcada numa realidade mais intensa,
uma realidade que iguala a todos, não para que se tornem iguais,
mas para que sejam diferentes, para que, o sendo,

se possam amar, independente do que sejam, e que façam desse amor
o ponto comum em que se encontrem e se entendam,
sem precisar pensar se o outro gosta de hortelã, se prefere menta,
se queima ervas finas, ervas malditas, ervas simplesmente,
ou se, em sua alma, que é só sua, faz subir a fumaça de qualquer incenso.

 


Tito Kehl é arquiteto, escritor e presbítero pela Ordem Hospitalar Sanjoanita. Autor de diversos livros, publicou em 2023 – pela editora Terra Redonda – o livro “Poemas ao Deus Desconhecido”. 

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