Ditadura e Universidade – reflexos do golpe na ESALQ

Ditadura e Universidade – reflexos do golpe na ESALQ

Em 2024, a Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (ESALQ/USP) completará 123 anos de serviços educacionais, científicos e extensionistas voltados, primordialmente, para os setores ruralistas brasileiros. Trata-se de uma instituição estatal e sustentada com recursos públicos e, portanto, sujeita às políticas dos diferentes governos da história do Brasil e do Estado de São Paulo.

No contexto do golpe civil-militar de 1964 e dos 21 anos de ditadura essa instituição foi levada a obedecer a políticas agrárias e universitária do gerencialismo tecnocrata, reflexos da forte intervenção de forças golpistas reacionárias e dos diferentes governos militarizados sob orientação dos Estados Unidos.

Em nível global, estávamos inseridos na “guerra-fria” e, por isso, os estadunidenses e suas agências filantrópicas, estatais, governamentais e privadas, procuraram cooptar os esalqueanos por meio de diversos financiamentos e ideologias.

Documentos revelados no interior do Museu Luiz de Queiroz e do prédio central da ESALQ indicam que essas ações de Washington objetivaram influenciar os materiais didáticos e científicos, a pedagogia nas salas de aula, a filosofia institucional, as bases da pós-graduação, o trabalho dos professores e até mesmo o movimento estudantil, pois as lideranças eram convidadas pela embaixada para jantares luxuosos em hotéis da cidade.

Tratou-se de um golpe civil-militar e, por isso, uma série de ações foram programadas nas universidades pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) que atuavam para influenciar desde eleições parlamentares em Brasília até os votos nas associações de professores e entidades estudantis, como foi o caso do Centro Acadêmico “Luiz de Queiroz” (CALQ), que sofreu diversas intervenções estrangeiras, militares e de civis golpistas.

Nesse período anterior ao golpe de abril, a política nacional era tensionada em dois extremos: de um lado articulava-se um golpe de Estado por diversos personagens da direita, como Carlos Lacerda, empresários, religiosos, associações de “donas-de-casa” e setores imperialistas dos Estados Unidos, que fomentavam a paranoica ideia de que o Brasil rumava para transformar-se em uma nova Cuba. Do outro lado dos extremos, estavam as forças políticas de esquerda, trabalhistas e nacional-populares, ancoradas na guinada progressista de Goulart que levantava bandeiras das reformas: agrária, educacional, fiscal, eleitoral, urbana e bancária – causando grande desconforto entre os setores conservadores e do capital financeiro internacional.

Esses conflitos nacionais chegaram dentro da ESALQ, quando os setores radicalizados e golpistas passaram a caçar alunos e professores de esquerda ou que lutavam pela restauração da democracia dentro da instituição.

É notório e público a tradição “trotista” das repúblicas da “Luiz de Queiroz” perante os calouros. Essa tradição ganhou dimensões radicalizadas em um contexto de alta polarização política nos anos de 1960, especialmente antes do golpe de 1964. Segundo relatos orais e documentos oficiais da ESALQ e da Polícia Civil, disponíveis para acesso público no Arquivo do Estado e no Museu da ESALQ, ocorreram perseguições contra diversos esalqueanos.

Podemos citar o emblemático caso de Paulo Marcomini, um estudante calouro da ESALQ que foi detido para sessões de trotes e teve sequestrados seus bens particulares visando incriminá-lo como “elemento vermelho subversivo”, pois participava de reuniões do Partido Comunista do Brasil. Foi entregue pelos colegas do CALQ e posteriormente a direção da ESALQ delatou o estudante para a delegacia de Polícia por ser comunista, mesmo que fosse um contexto anterior ao golpe e à ditadura, o que revela uma particularidade reacionária de Piracicaba perante o cenário nacional, que ainda era de democracia.

Após o golpe e no período de consolidação da ditadura também foram revelados por meio de documentos oficiais e relatos orais outros casos de violência institucional mais conhecidos, quando os professores da ESALQ também foram entregues para as forças de repressão da ditadura. Alguns exemplos podem ser citados, como os professores Oriowaldo Queda, Ondalva Serrano, Rodolfo Hoffman e Roberto Moreira que foram entregues pela direção e chefes de departamento da ESALQ para o DOPS, pois eram críticos ao governo, favoráveis ao processo de democratização do Brasil e simpáticos à reforma agrária – considerados uma afronta à ditadura.

Com o avanço da fascistização do regime por meio do AI-5, é importante reportar o assassinato do esalqueano Luiz Hirata (Lua) – que foi sistematicamente perseguido durante sua graduação e morto após sessões de tortura na sede do DOPS em São Paulo.

Outros casos poderiam ser citados, como a perseguição de pesquisadores da pós-graduação, prisões de estudantes de graduação, invasão de repúblicas, proibição de festas e passeatas, a presença de espiões dentro das reuniões de alunos e professores entre outras diversas violações dos direitos humanos que poderão ser apreciadas no livro “Agro, ditadura e universidade” – publicado pela editora Autores Associados.

Por fim, no processo lento e gradual de abertura democrática, os estudantes de Piracicaba, inclusive alguns esalqueanos, como foi o ex-presidente do CALQ João Hermann Neto, colaboraram para a luta contra-hegemônica visando organizar os partidos e movimentos sociais para participar dos pleitos eleitorais por meio das “Diretas Já”, como foram as organizações dos congressos da UNE de 1980 e 1982 em Piracicaba.

Neste ano de 2024, também se completam 60 anos do golpe de 1964 e este texto procurou revelar alguns aspectos desses momentos tenebrosos que precisam rememorados para impedi-los de repetir-se, como foi o 8 de janeiro de 2023.

Encerro estes breves escritos com votos de um fortalecimento da nossa democracia e a esperança em um sistema educacional que reforce nosso processo de redemocratização que se mostra frágil desde 1984.


Dr. Rodrigo Sarruge Molina é piracicabano de coração e professor adjunto da Universidade Federal do Espírito Santo. 

 

(Foto: Presidente Médici visita a ESALQ -Arquivo do Estado de São Paulo).

 

 

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