A campanha pelas eleições diretas foi um marco na vida de muitos, como também foi na minha. Aos 10 anos, comecei a me dar conta do que vivíamos no Brasil, tanto do regime opressor dos últimos 20 anos quanto da força profunda e renovadora que empurrava as multidões que aos poucos foram aparecendo nos jornais e na televisão.
Ao mesmo tempo, ingenuamente, passei a enxergar “mocinhos e bandidos” entre os vários atores sociais envolvidos, incluindo a imprensa. Só muitos anos mais tarde, já jornalista formada e pós-graduada, fui conhecer os percalços reais da cobertura que se fez daquele trecho de história, incluindo o tipo de acordos que nortearam seu trabalho, numa cadência que acompanhava exatamente o processo de abertura política. Se houve alegria e música, união, camisetas e cartazes, também houve medo, repressão e recuos.
A força do momento cravou a posição adotada pelos meios de comunicação nessa história que não muitos conhecem. As duas breves análises a seguir são exemplares nesse sentido e ambas se debruçam sobre o mesmo evento: o grande comício da Praça da Sé, que reuniu 300 mil pessoas no centro da capital paulista em 25 de janeiro de 1984.
Era o ápice da campanha pelas eleições Diretas, que tivera início no ano anterior, desencadeada pela proposta de emenda constitucional Dante de Oliveira, apresentada ao Congresso nacional em abril. Ao longo dos meses, o movimento foi ganhando apoio de políticos, trabalhadores, artistas, esportistas e estudantes até tomar o corpo do grande movimento popular das Diretas.
Este, no entanto, praticamente inexistia nos noticiários da Rede Globo, ao mesmo tempo em que era acompanhado com empolgação por outras emissoras, como Bandeirantes e Manchete. Foi o nascimento da expressão “O povo não é bobo! Abaixo a Rede Globo!”. Também foi o nascimento das dúvidas que aquele grito de ordem despertava. Eu nunca tinha me questionado sobre o papel social da TV.
A resistência da Globo em dar voz ao povo foi se tornando insustentável. Mesmo assim, o ato do dia 25 de janeiro foi noticiado pelo Jornal Nacional como uma manifestação cívica pelo aniversário de fundação da cidade de São Paulo. Um dos mais graves erros de julgamento da cúpula da emissora, que nunca se refez da má escolha.
Enquanto isso, o jornal Folha de S. Paulo, pertencente a um grupo, assim como a Globo, intimamente ligado ao centro do poder, teve a percepção da importância do momento e da necessidade de reorientar sua abordagem. A capa do dia 26 de janeiro, estampando a foto do grande comício frente a catedral da Sé, é um clássico do jornalismo brasileiro.
Após as diretas, a Folha encampou o “marketing da abertura”, que tornou possível a um jornal de orientação essencialmente mercadológica entrar para a história como “O Jornal das Diretas”, guiado por um viés pretensamente democrático, fazendo sombra a um passado recente de colaboração escancarada com os militares no poder – vide Folha da Tarde, jornal do mesmo grupo, que durante anos colocou viaturas e oficinas de impressão a serviço da repressão.
Variações sobre o mesmo tema, nas quais “mocinhos e bandidos” tinham papel menos determinante – enquanto mocinhos e bandidos – do que as conversas, acordos e relações entre eles. Naquele momento eu não tinha clareza de nada disso. Mas as questões foram plantadas e ao longo dos anos fui procurando entender, questionar. Só muito mais tarde, já como pesquisadora da história da imprensa, pude entender a dimensão e a complexidade daqueles eventos.
Patrícia Ozores Polacow é jornalista formada pela Universidade Metodista de Piracicaba, mestra e doutora em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo.
Depoimento forte. Merece continuidade detalhando os bastidores das coberturas (ou ausência de coberturas) jornalísticas.
Parabéns, Patrícia!