Gosto muito da definição do jornalista Ricardo Kotscho sobre o que foi o movimento das diretas. Disse ele: “o país virou uma grande quermesse, todo mundo na rua, feliz, e a cada comício juntava mais gente mesmo”.
Depois de anos de ditadura, o movimento pelas Diretas foi – com certeza – o reencontro do povo consigo mesmo, com a vontade de voltar a sonhar, mesmo sem ter muita clareza de quem poderiam eleger (e isso naquele momento nem importava tanto). Creio que, hoje, seja muito difícil para quem tem menos de 50 anos entender o que foi esse momento. Porque os palanques aceitavam lideranças de todos os partidos – e, mesmo nas cidades menores, o tema Diretas juntava até opositores históricos nos comícios. Sem ranços, sem ofensas dúbias ou veladas. Como quem tem 20, 30 anos conseguirá entender essa atmosfera política, tendo vivido politicamente apenas o que houve neste século de completa polarização?
A emenda das diretas foi apresentada pelo recém-eleito deputado federal por Mato Grosso, Dante de Oliveira, em 2 de março de 1983 – e assinada por seu autor e mais 176 deputados e 25 senadores. Anos depois, num livro feito em parceria com Domingos Leonelli, Dante assim resumiria sua iniciativa: “durante a campanha me chamava a atenção que, nos debates nas universidades, nos bairros e mesmo em comícios e grandes eventos, a resposta da população era muito forte quando se falava em elegermos o presidente da República.” A emenda dispunha que revogados os artigos 74 e 148 da Constituição vigente – é bom lembramos que estávamos em 1983 e a Constituinte ainda não ocorrera – passava-se a seguinte redação: “o presidente e vice-presidente da República serão eleitos, simultaneamente, entre os brasileiros maiores de 35 anos e no exercício de seus direitos políticos, por sufrágio universal e voto direto e secreto, por um período de 5 anos.” Parte de sua justificativa se formalizava pela seguinte consideração: “um presidente eleito pelo voto direto está vinculado ao povo e com ele compromissado. As eleições diretas para Presidente da República pressupõem um novo pacto social. Serão as forças vivas da nação, do assalariado ao empresariado, que irão formar a nova base social de poder”. E apenas 7 dias depois uma comissão do PMDB foi formada para definir o plano de campanha para impulsionar a emenda nacionalmente. A aprovação da campanha veio em 14 de abril pelo Diretório Nacional do partido. Mas ninguém realmente imaginava, àquela altura, sequer o próprio Dante, o tanto que as “diretas já” mobilizariam durante os 12 meses seguintes.
A sensação é que importou ao povo, que foi aderindo até chegar aos comícios de milhões – e que talvez seja a explicação mais efetiva para aqueles tempos – é que votar para presidente era a devolução de um direito que lhe fora roubado pelos militares. A última eleição para presidente ocorrera em 1960, elegendo Jânio Quadros. Já haviam se passado 23 anos e o povo queria escolher – certamente não mais os militares.
Em Piracicaba, o movimento pelas “Diretas Já” chegou em setembro de 1983, num encontro que juntou lideranças do PMDB, PT, PTB e o prefeito Adilson Maluf – reunindo cerca de 200 pessoas no campus Taquaral da UNIMEP. Com constante presença do deputado João Herrmann – que se tornaria um dos grandes companheiros de Dante de Oliveira, trazendo-o à cidade por algumas vezes em plena campanha e fazendo de seu apartamento funcional em Brasília espaço de encontro das lideranças nacionais do movimento – vieram comícios e debates que, mais uma vez na UNIMEP, tiveram a presença de juristas ilustres, como Hélio Bicudo e Márcio Thomaz Bastos. Foi em seu congresso realizado também na UNIMEP que a ANDES formalizou, em fevereiro de 1984, seu apoio à diretas, através de cerca de 200 participantes de todo o país que ali se encontravam, entre eles o futuro reitor da UFSCar e prefeito de São Carlos, Newton Lima Netto, o físico Luiz Pinguelli Rosa e o presidente da SBPC, Crodowaldo Pavan.
O grande comício da cidade aconteceu ao final de fevereiro, antecedido por várias passeatas que saíram dos bairros para chegarem à Praça José Bonifácio – e por um carnaval, na noite anterior, na Rua do Porto, festejado por artistas e um Comitê Pró-Diretas. Não era um movimento pequeno. No dia do comício, a praça estava lotada e a importância da cidade e seu envolvimento se media pelos que discursaram: o vice-governador Orestes Quércia, os deputados Pacheco Chaves, Ruth Escobar, Ari Pedroso, Hélio Furlan, Eduardo Jorge, Paulo Diniz, Valter Lazzarini, o vice-prefeito de Americana Fernando Puppo e José Machado, que integrava a executiva estadual do PT. O grito dos piracicabanos veio pelo Padre Otto Dana, de representantes da Associação das Mulheres e Associação dos Favelados, dos partidos e dos estudantes. O comício foi encerrado com fala de João Herrmann e do prefeito Adilson Maluf. A voz era uma só: queremos votar para presidente!
Em 14 de abril, portanto a menos de dez dias da votação da emenda pelo Congresso Nacional, Dante de Oliveira estava em Piracicaba para participar de um ato público articulado por João Herrmann, que se realizou no Salão Nobre da UNIMEP lotado, no campus Centro, junto a outros deputados federais e lideranças locais. A efervescência do Brasil se repetia e se reproduzia na cidade.
Na noite do dia 25 de abril, muitos choraram juntos, na Praça José Bonifácio e no Salão Nobre da UNIMEP, onde se realizavam vigílias, quando a emenda foi derrotada. Mesmo com a proibição formal de que notícias sobre a votação fossem dadas pelas tevês e por emissoras de rádio, uma central de informações, montada a partir da Universidade, permitiu que os piracicabanos acompanhassem, voto a voto, o que se decidia em Brasília. Faltaram apenas 22 votos para que a emenda fosse aprovada.
Nota dos editores: para saber mais sobre como se desenvolveu a campanha das diretas e como o movimento foi crescendo e tomando o país, acesse https://atlas.fgv.br/verbete/5843 Já na próxima segunda-feira, dia 29, o jornal Folha de São Paulo e a OAB- SP promovem um seminário, das 15h às 19h, em São Paulo, mas também com transmissão pelo youtube, intitulado “40 anos da diretas já”, com participação, entre outros, de Oscar Vilhena, professor da FGV Direito São Paulo; Leonardo Sica, vice-presidente da OAB-SP; Eunice Prudente, professora de direito da USP; e Luis Felipe Miguel, coordenador do grupo de pesquisa Democracia e Desigualdades (Demodê) da UnB (Universidade de Brasília).
Beatriz Vicentini é jornalista.
Muito bom o artigo!
Agradecemos pela mensagem e leitura!
Abraço!
Resgate oportuno e conscientização imprescindível.
Grato, professor Zé Lima!
Abraço!
Parabéns pelo artigo.
Agradecemos!