A memória histórica constitui dimensão fundamental tanto para o amadurecimento pessoal quanto para o desenvolvimento das sociedades. Conhecer o passado, reconhecendo seus avanços, limites e contradições, descortina-se como condição necessária para a construção de um futuro como superação.
As tradições judaica e cristã são sedimentadas no valor do testemunho e da memória. Na cosmovisão bíblica, as narrativas de caráter mais mítico, o recontar de eventos exemplares, os ensinamentos proféticos, as parábolas teologais, as festividades e os rituais são memórias fundantes, que atribuem sentido ao presente, ao mesmo tempo que apontam para o futuro como devir. A memória configura-se como a base para toda a esperança.
Na narrativa bíblica exodal, de maneira ilustrativa, a memória da dura e perversa experiência da escravidão no Egito é fundamental para se compreender a força libertadora da ação divina na história. A memória torna-se uma estratégia, um elemento chave de resistência contra novas situações de opressão. Quando Israel, após passado 40 anos peregrinando no deserto – tempo de toda uma geração –, apresenta sinais de esquecimento do que representou a escravidão, ele se volta contra o próprio Deus libertador e manifesta desejo de retroceder em sua jornada, sentindo saudades das migalhas, das cebolas que recebia no Egito. A ausência de memória conduz a retrocessos.
No período de exílio e cativeiro na Babilônia, a memória histórica também se revelou de suma importância para a manutenção da identidade judaica. A força da memória aparece no belíssimo Salmo 137, quando o salmista canta: “As margens dos rios da Babilônia, nos sentávamos chorando, com saudades de Sião”. Se a memória da escravidão, na narrativa do Êxodo, torna-se alimento para se projetar a libertação, no tempo de exílio, no cativeiro babilônico, a memória de Israel liberto destaca-se como referência e força para não sucumbir ao período de cativeiro. A memória afirma-se como fonte inspiradora, como alento para se acreditar e se construir um novo tempo.
No universo bíblico, as experiências do passado, de opressão e libertação, tornam-se vivas, atuais por meio dos rituais, que cumprem a função de rememorar o evento fundante, a definir e demarcar as balizas de um novo tempo histórico. O passado não pode ser negligenciado ao esquecimento, pois nele se encontram as chaves que dão o sentido verdadeiro da história, possibilitando a edificação do futuro como realidade de utopia e promessa.
A tendência revisionista em história, que parece prosperar no contemporâneo, tem assumido um aberto caráter ideológico – na concepção mais coerente e filosófica do termo. Para justificar projetos de poder, sempre alheios aos anseios mais democráticos e populares, forjam-se compreensões absurdas sobre o passado histórico. Talvez o exemplo mais ilustrativo e aviltante apareça no movimento de negação do próprio holocausto como realidade histórica. A redução e minimização dos horrores do holocausto, de maneira a atenuar as brutalidades e perversidades cometidas contra os judeus – e contra a própria humanidade – nos campos de concentração, sob o domínio nazista, além de desrespeitar profundamente a memória de tantos que morreram, abre margens para que a bestialidade nazista se recoloque como alternativa na história.
A vileza do revisionismo histórico desponta também no contexto atual brasileiro, sob a negação das atrocidades cometidas no período da ditadura empresarial-militar. É algo surreal que, em pleno regime democrático, lideranças políticas, protocolarmente guardiões dos princípios constitucionais, em um movimento de declarada traição à Constituição Federal de 1988, estimule, de alguma maneira, conclamando para uma espécie de ritual macabro, a celebração festiva do início de um período de exceção autoritária, no qual as garantias democráticas foram suspensas. O regime empresarial-militar promoveu, de forma covarde, com requintes de crueldade e ao arrepio do direito, a tortura e o extermínio de cidadãos brasileiros. Essa é a verdade histórica irrefutável. Essa é a memória que não pode ser obliterada.
Na tradição bíblico-cristã, o conhecimento da verdade guarda a força de promover a libertação. Nesta mentalidade, a memória desvela-se como perigosa, pois traz o germe revolucionário da transformação, na edificação da justiça e da paz. Na memória perigosa de Israel bíblico, não há paz sem justiça. A memória impulsiona a luta que se agigante, derrubando tiranos e opressores e fazendo brotar o tempo da liberdade. Foi assim na experiência do Êxodo, no exílio babilônico, na denúncia dos profetas, na dinâmica do movimento de Jesus. Talvez seja por reconhecer – mesmo que minimamente e de maneira fundamentalista – a potencial libertador da memória no contexto bíblico é que se ensaia o revisionismo, a negação e o apagamento do golpe de 1964, bem como de outros eventos obscuros de nossa história.
A memória histórica configura-se como um direito humano fundamental. A busca sincera pela verdade, no conhecimento profundo e crítico do passado, permite a compreensão dos limites e contradições do presente, de maneira a vislumbrar novos caminhos, novos tempos, novos paradigmas, compondo o futuro como campo aberto de possibilidades.
Adelino Francisco de Oliveira é filósofo, doutor pela Universidade de Braga e professor no IFSP – Instituto Federal de São Paulo – campus Piracicaba.
Parabéns, prof. Adelino, por nos presenciar com mais um excelente texto!