Nunca havia me dado conta de como somos tão cinematográficos até assistir, dia desses, a um trecho de um documentário sobre Eduardo Coutinho. Eu estava ali, no meu sofá-habitat, tentando me refrescar um pouco desse verão sem sentido que invadiu o outono desta cidade de dengues e mosquitos, quando dei com a figura de Coutinho bem no meio da tela da televisão falando qualquer coisa sobre o hábito de fumar. Claro, parei para ver. Conversando com a câmera como se conversasse só comigo – e respondendo a pergunta que o entrevistador lhe fazia sobre ser ele um fumante inveterado – Eduardo Coutinho sentenciou: “eu fumo pelo gesto. Por o cigarro na boca, soltar a fumaça, ver a fumaça subindo… Eu fumo pelo gesto. Não tem graça fumar no escuro.”
É claro que essa ideia do gesto, dita por um cineasta como ele, tem um significado muito maior do que se dita por um cronista interiorano como eu. Acho mesmo que para um cineasta o gesto e a percepção devem ser parte quase inconsciente de suas alucinações reais diárias. Mas para mim, naquele momento, ilhado no meu sofá, em Piracicaba, a ideia do gesto me jogou para dentro de uma realidade estranha. Coutinho às avessas, me dei conta dos meus gestos naquela noite. Fazendo todo um movimento de levar à boca o meu chá gelado de gengibre com adoçante (sim, eu sou diabético), eu interpretava como um canastrão a imagem do homem sentado ao sofá, sentindo entrar pela janela o bafo quente da noite lá de fora. Maldito (e genial) Coutinho. (Me viciei agora em pensar os gestos, em observar o gestual da vida em seu teatro do existir). Depois, me lembrei de Shakespeare – e de Macbeth – do trecho em que se diz que “a vida não passa de uma sombra que caminha, um pobre ator que se pavoneia e se aflige sobre o palco”. Só aí me dei conta de que há dez anos falecia Eduardo Coutinho.
Gesto. Teatro. Tragédia. O que poderia ter sido mais trágico do que a morte desse cineasta – cuja década se completou em fevereiro, sob o mais sepulcral e (por que não?) dramático silêncio. Coutinho morreu no dia 2 de fevereiro de 2014, assassinado a facadas pelo próprio filho que sofria transtornos mentais. Ambientada num apartamento do Leblon, a cena final da vida de Eduardo Coutinho expôs conflitos e dramas de um núcleo familiar obviamente assolado por problemas – típica tragédia da vida real como as que ele registrava em seus próprios filmes (como em “Edifício Master”, por exemplo). Aliás, me lembro também que em uma coletiva da imprensa realizada em julho de 2013, na FLIP, em Paraty (da qual tive a felicidade de participar), o cineasta deixava clara sua preferência pelos dramas sociais e por conflitos reais que se desenvolvem nos submundos da vida cotidiana. Em certo momento da entrevista confessou ainda: “não gosto do surrealismo no cinema e odeio a vanguarda francesa! Deles fico apenas com Bruñel e o Cão Andaluz, o resto pode jogar fora.”
Em Paraty, acompanhado de seu inseparável cigarro (e do gestual em torno dele), Coutinho falou a pouco mais de 15 ou 20 jornalistas ali presentes (e a mim, claro, infiltrado entre eles). Memorialmente, reviu sua trajetória de cineasta e refletiu – não sem bom-humor – sobre as dificuldades de se fazer cinema no Brasil. “Aqui no Brasil até o bilheteiro do cinema avisa: cuidado que o filme é brasileiro!”
Cabra marcado para morrer de maneira tão cinematográfica, as declarações de Coutinho nessa entrevista em Paraty de alguma forma antecipavam (quem diria?) sua própria cena final. Explico. Naquela tarde, ao ser perguntado por um jornalista se ele se considerava o melhor cineasta do Brasil (pergunta das mais estapafúrdias, diga-se de passagem), Coutinho generosa e humildemente respondeu – na sua modéstia tão peculiarmente verdadeira: “eu sou o melhor cineasta de mim mesmo, do meu quarteirão, do meu bairro.” Sete meses depois ele estaria morto. A vida é teatro. A vida é filme.
Dez anos sem Eduardo Coutinho. E que baita falta ele, seus gestos, seus cigarros e seu cinema nos fazem.
Alexandre Bragion é editor do Diário do Engenho.
(Foto de capa: Alexandre Bragion/FLIP, 2013).