“A democracia é uma delícia, mas tem seus custos.”
Ciro Gomes, durante debate eleitoral de 2018.
“Como a democracia goza de muito prestígio, adquirimos o hábito prejudicial de estender sua definição a todo tipo de coisa que apreciamos.”
Yascha Mounk, em O Povo Contra a Democracia.
“A democracia é um empreendimento compartilhado. Seu destino depende de todos nós.”
Steven Levitsky e Daniel Zibaltt, em Como as Democracias Morrem.
Desde o processo complexo, conturbado e questionável de impeachment de Dilma Rousseff, parte considerável do campo progressista brasileiro tem se esforçado por fazer um discurso em defesa da democracia. Nas eleições de 2018, muitos políticos, intelectuais, brasileiros e estrangeiros, jornalistas denunciaram os riscos e as ameaças à democracia que o então candidato Jair Bolsonaro representava. Não funcionou. O candidato, que chegou a dizer que não aceitaria outro resultado que não a sua vitória, saiu vitorioso das urnas.
Durante a campanha, Bolsonaro, seus filhos e apoiadores não mediram palavras para colocar em questão a lisura do processo eleitoral e a confiabilidade das urnas eletrônicas, divulgando teorias conspiratórias sobre fraude eleitoral. Quando saíram vitoriosos, todas as dúvidas que antes tinham com o processo e as urnas eletrônicas simplesmente desapareceram. Instalava-se no Brasil, através do voto democrático, um governo sem nenhum apreço pela democracia, que durante o primeiro ano de mandato não fez questão de esconder suas intenções autoritárias. E a vida segue, o cidadão comum, desempregado, ou subempregado, nas filas de hospitais, sem condições de pagar a tarifa do ônibus, segue sua vida como se nada tivesse mudado. E talvez não tenha mudado mesmo.
O que é democracia para o cidadão médio brasileiro? O que essa palavra significa para milhões de pessoas que votaram em Bolsonaro nas últimas eleições? Para o povo simples, sem acesso ao conhecimento e às informações, que se sente abandonado pelo sistema ou pelos políticos corruptos, que perece nesses rincões do Brasil, o que significa democracia? Para os milhares de jovens na casa dos 20-30 anos, que nasceram na vigência da democracia, mas que não tiveram oportunidade de ter uma educação e uma formação de qualidades, que sobrevivem em subempregos, que são humilhados nos templos do consumo ou nas blitz policiais, que são encarcerados pela política de guerra às drogas, que morrem ou testemunham a morte de seus irmãos e amigos por balas perdidas, o que significa democracia para essa parcela da população?
Todos que passaram pela educação formal ouviram, ou deveriam ter ouvido, em alguma aula de história, filosofia ou sociologia, que democracia é uma palavra de origem grega, composta por duas palavras: demo e cratos, e que significaria algo como ‘poder ou governo do povo’. E deveriam também ter uma compreensão mínima a respeito dos processos de democratização de uma sociedade, nessas mesmas aulas. Digo que deveriam por que após o anúncio do tema da redação do ENEM 2019 – democratização do acesso ao cinema -, muitas pessoas foram até o google para descobrir o que seria ‘democratização’. Esse fato pode nos ajudar a compreender alguns fenômenos recentes em nosso país, como o pedido de volta da ditadura militar entoado por alguns brasileiros nos últimos anos ou o apoio de parte considerável da população a um candidato à presidência claramente antidemocrático.
É difícil, se não impossível, esperar que aqueles para quem a democracia não passa de uma palavra vazia tenham disposição para defendê-la, compreendam seu valor, lutem por ela. Com essas observações, não pretendo afirmar que o povo brasileiro, as gentes sofridas, desprezadas, marginalizadas, violentadas, seja contrário a democracia ou antidemocrata convicto. Tampouco estou dizendo que não houve democracia de modo algum nesse país. No entanto, parece que uma defesa sincera da democracia passa pelo reconhecimento dos limites que as democracias reais apresentam. Passa por reconhecer as falhas não para negar a democracia, mas para buscar aprimorá-la, ampliá-la.
Dizer que democracia é o ‘poder ou governo do povo’ não é dizer muita coisa. A democracia seria uma forma de governo baseada na vontade popular. E essa vontade se expressa através dos votos. Na antiguidade, lá na Grécia, onde a democracia foi inventada, esses votos eram para decidir os assuntos da cidade, costuma-se dizer que tratava de uma democracia direta. Na modernidade, esses votos são para eleger representantes. Na democracia representativa, os cidadãos, através do voto, elegem aqueles que irão tratar dos interesses públicos – políticas públicas, impostos, segurança etc.
Segundo o filósofo e cientista político italiano Norberto Bobbio, “o único modo de se chegar a um acordo quando se fala de democracia, entendida como contraposta a todas as formas de governo autocrático, é o de considerá-la caracterizada por um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos” *. Não parece exagero afirmar que Bobbio teria inaugurado, ou ao menos contribuído fortemente, para que durante muito tempo, entre os teóricos políticos, prevalecesse a ideia de que haveria uma interdependência entre estado liberal e estado democrático quando afirma que “é preciso que aqueles que são chamados a decidir ou a eleger sejam colocados diante de alternativas reais e postos em condição de poder escolher entre uma e outra. Para que se realize esta condição é necessário que aos chamados a decidir sejam garantidos os assim denominados direitos de liberdade, de opinião, de expressão das próprias opiniões, de reunião, de associação etc. – os direitos à base dos quais nasceu o estado liberal e foi construída a doutrina do estado de direito em sentido forte” *.
No entanto, recentemente, no livro O Povo Contra a Democracia, Yascha Mounk disseca dois fenômenos bastante contemporâneos no cenário político mundial que colocam em xeque aquela interdependência entre liberalismo e democracia. Mounk afirma que a democracia liberal – um sistema político ao mesmo tempo liberal e democrático, que tanto protege os direitos individuais como traduz a opinião popular em políticas públicas (p. 44) – pode se desvirtuar em duas formas: democracias iliberais ou em regimes liberais antidemocráticos. Mas o que seria uma democracia iliberal? E, por outro lado, o que seria um liberalismo antidemocrático? Vejamos como o autor caracteriza essas duas novas formas de governo:
“Democracias podem ser iliberais. Isso tende a acontecer particularmente em lugares onde a maioria opta por subordinar as instituições independentes aos caprichos do executivo ou por restringir os direitos das minorias que a desagradam. Por sua vez, regimes liberais podem ser antidemocráticos, a despeito de contarem com eleições regulares e competitividade. Isso tende a acontecer sobretudo em lugares onde o sistema político favorece de tal forma a elite que as eleições raramente servem para traduzir a opinião popular em políticas públicas” (p. 45 *).
Manuel Castells é outro a analisar os fenômenos recentes que se espalham pelo mundo – Trump, Brexit, Bolsonaro – e que ele associa à crise da democracia liberal. Essa crise se manifestaria principalmente na crise de legitimidade dos representantes políticos, denunciada por diferentes manifestações sociais nos últimos anos – 15-M, na Espanha, Ocuppy Wall Street, nos EUA, o Nuit Debout, na França, as jornadas de junho de 2013, no Brasil – que de maneira geral declaravam a descrença nos partidos políticos, rechaçavam a corrupção e clamavam por melhores condições de vida. Castells, diferentemente de Mounk, não está empenhado em salvar a democracia liberal. Antes, parece antever seu fim e esperar por algo novo *. Afinal, as insatisfações populares não são infundadas, uma vez que a democracia liberal não entregou aquilo que prometia e as instituições sobre as quais ela se sustenta não conseguem garantir os direitos que justificariam suas existências.
O descrédito com o modelo representativo e com os partidos políticos, a percepção de que a corrupção prepondera em todos os cantos dos poderes, e a crença de que os políticos não representam o povo podem servir de palco para a ascensão de figuras como Hitler *, Erdogan, Chávez, Trump, Bolsonaro, que usam as regras do jogo democrático para chegar ao poder e corroer a democracia. Mas também podem servir de terreno fértil para que novas formas de se fazer democracia possam se consolidar.
A democracia precisa ser um projeto compartilhado, construído junto, em constante aprimoramento. Não dá para defender a democracia sem reconhecer as limitações e deformações que a democracia liberal, enquanto sistema político real e vigente, apresenta. Defender a democracia, como valor e método, mas também como fim em si mesma, como dizia Bobbio, exige de nós um compromisso muito grande com as regras do jogo democrático. Mas também exige um zelo muito grande para afastar do governo aqueles que não têm compromisso com a democracia.
Infelizmente, falhamos na última eleição. Falhamos de diversas maneiras e por variados motivos. Há responsabilidades para serem distribuídas igualmente entre diferentes atores políticos e sociais. A questão nesse momento é como iremos resistir e lutar para que a democracia brasileira, com todas as suas falhas e limitações, não seja liquidada. Mas para isso é preciso que tenhamos um projeto democrático, comprometido com o combate a corrupção, às desigualdades vergonhosas com as quais convivemos hoje, comprometido com a justiça e a igualdade, com educação e saúde de qualidade, com segurança, pois são esses os anseios do povo. Mas é preciso que o povo possa identificar esses anseios com a democracia, ou melhor, que a palavra democracia possa ser identificada com esses anseios, com esse conteúdo.
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Francine Ribeiro é filósofa e professora de Filosofia no Instituto Federal de São Paulo campus Capivari.
Bibliografia sugerida pela autora:
*1Bobbio, O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo, Paz e Terra, 1986, p.18.
*2 Bobbio, O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo, Paz e Terra, 1986, p.20.
*3 Mounk, O povo contra a democracia: por que nossa liberdade corre perigo e como savá-la, Companhia das Letras, 2019.
*4 Castells, Ruptura: a crise da democracia liberal, Zahar,2018.
*5 Arendt, Origens do totalitarismo, Companhia de Bolso, 2012, p.352; 354-355.
Ótimo texto. O tema escolhido é muito oportuno. À sociedade urge a compreensão de como deveria funcionar um regime democrático para ter condições de almejar uma realidade em que os direitos do cidadão sejam verdadeiramente respeitados.
Texto reflexivo e provocativo
Parabenizo a Professora Francine.
Creio que orda progressista do pais errou em não entender os movimentos de 2013 e errou em não perceber que a direita se movimentou por meio das midias digitais, publicações e órgãos de comunicação e criaram a narrativa que a democracia não criou nada de bom.
Abs
Érica e Fleides, obrigada pelo retorno. É sempre muito bom saber que do outro lado tem alguém disposto a dialogar com a gente.
Creio que como professora/educadora uma das minhas tarefas é também contribuir com esse exercício reflexivo tão necessário. E isso começa com o conhecimento, compartilhando o pouco que sei, na esperança de que esse conhecimento possa se ampliar e multiplicar.
As jornadas de junho de 2013 ainda estão por ser compreendidas. Fico muito triste, no entanto, quando vejo leituras reducionistas e que visam apenas a confirmação de uma narrativa partidária. Enquanto o campo progressista não conseguir de fato se configurar como um campo, ficaremos batendo cabeça.