Quem frequentava as aulas do etnógrafo Marcel Mauss (1872-1950) encontraria entre seus alunos os mais variados tipos de sujeitos e interesses. De antropólogos, historiadores e cientistas sociais a poetas, escritores e pintores. Entre seus célebres alunos estão Denise Paulme, Claude Lévi-Strauss, Roger Bastide, Marcel Griaule e Louis Dumont.
Mauss era conhecido como um etnógrafo surrealista, pois era capaz, em suas aulas, de associar culturas e cosmogonias que a primeira vista eram completamente diferentes e sem ligação. Nesse sentido, ele aproximava-se do poeta simbolista francês Lautréamont, que defendia que a mais bela visão humana era feita do encontro entre uma máquina de costura com uma mesa de dissecação. Aliás, vale uma nota: é aqui que se encontra o princípio fundamental do surrealismo: no encontro de dimensões paradoxais.
Um dos escritos mais influentes de Marcel Mauss foi o “Ensaio sobre a dádiva” (1923-24) o qual ele elaborou a partir de seus estudos sobre as práticas de troca de presentes entre povos originários do noroeste norte-americano e povos polinésios. Mauss, um socialista convicto, acreditava que nessas práticas estavam um importante elemento para pensar a sociedade do porvir.
Estudando os povos originários do noroeste norte-americano, Mauss percebeu que havia uma longínqua tradição chamada potlach, que consistia basicamente na competição entre chefes de diferentes casas que disputavam quem era capaz de oferecer mutuamente quantidades cada vez maiores de bens, especialmente brasões de cobre esculpidos e peles de animais. Em outras palavras, esses chefes competiam entre si para ver quem era mais generoso. Eles presenteavam os chefes rivais e, normalmente, o vencedor era aquele que doava tudo que tinha ao outro.
É claro que isso não se dava sem um contexto cultural bem fundamentado: a troca de presentes era uma troca espiritual, pois ao doar, aquele que doava recebia a retribuição daquele que recebia, isto é, o reconhecimento de sua influência como um grande chefe. Assim, a dádiva antecederia o ato primordial de “contrato” defendida pelos iluministas ingleses. Mas, o que nos interessa é que o poder não passava pelo acúmulo, mas pela dádiva. A autoridade, portanto, estava assentado em uma lógica circular dos bens materiais e espirituais.
Mutatis mutandis, voltemos para nossa cruel realidade. Se um desses chefes olhasse para a riqueza obscena dos bilionários, o que ele veria senão uma espécie de verme devorador do sagrado espírito humano? Mas o bilionário é só o último elo de uma cadeia de relações que alimentam cotidianamente o acúmulo espiritual e material das sociedades humanas contemporânea. Uma lógica atravessada mais pelo egoísmo do que pela dádiva. Quem entre os leitores desse texto não conhecem aquelas pessoas, que independente da sua posição social, nunca retribuem aquilo que recebem? Quer dizer, vivem para receber o ímpeto espiritual dos outros sem jamais sair do lugar de beneficiário?
O egoísmo é a gramática do capitalismo. O acúmulo, fluxo de mão única que estrutura as nossas relações econômicas e mesmo cotidianas. Trata-se do ocaso do espírito humano, que no olhar de Mauss, consistia a trama de diferentes cosmogonias no tempo e espaço.
Por fim, para não deixar de pontuar o presente, o vírus Sars-Cov-2 prospera nesse ambiente mesquinho em que a lógica é apenas receber. Inserir-se nesse fluxo que se dissipa em um ponto final em vez de circular parece ser o sonho de muitos. É justamente essa lógica linear da riqueza que cimenta o concreto das nossas vidas, produzindo a sinergia entre uma forma de vida biológica (o vírus) com a pobreza: das favelas ao ônibus lotado, do dízimo ao imposto, o coronavírus é o um fino retrato do egoísmo.
Rafael Gonzaga é escritor e historiador com mestrado e doutorado em Cosmogonias, Artes Africanas e África Imaginada pelas Vanguardas Europeias. É autor do livro “A Jornada de Pablo”, publicado pela editora Lyra das Artes.