Da última vez que encontrei com Deus

Da última vez que encontrei com Deus

Da última vez que encontrei com Deus,
ele estava sentado na praça, no seu banco preferido,
e lia, completamente horrorizado, as notícias no jornal de Domingo.
Aproximei-me com cuidado (é prudente, quando ele está nesse estado),
e sentei-me sem nada dizer, esperando dele algum comentário,
enquanto ele lia, devagar, e sua respiração denotava claramente
o quanto estava tentando se controlar.

Por fim, deu um suspiro, e, pondo a sessão de esportes de lado, comentou,
“Isso já não é mais futebol! Virou um jogo de apostas,
o dinheiro engoliu tudo, não há mais beleza,
os atletas – se é que podemos chamá-los –
não passam de bonecos, que só pensam nos próprios cabelos,
e em quanta grana ganharão em seus projetos-solo!
Prefiro a quinta divisão do regional do Acre, onde ainda se joga bola por amor à arte!”

Virando a página, passou ao caderno de cultura,
“E isso, então! Qual é a relação que existe
entre a sublime harmonia, o ritmo sutil, a melodia que enleva,
a poesia que inspira e nos transporta, e esse desfile de rotundas, de peitos, essa profusão de movimentos
que só vi antes nos possessos gadarenos,
essas letras que só exaltam o egoísmo, o sexo e os chifres,!
essa cantoria esganiçada, essa… esse…”, e parou, respirou fundo,
e, olhando para as árvores, continuou,

“Mas isso não é o pior! Você viu o que fazem com a natureza? Afff!
Eu escondi um mistério e um tesouro em cada milímetro da terra,
coisas mais preciosas do que o ouro e a prata,
na iridescência das asas de um besouro,
no vôo de uma andorinha, no olhar de um saruê, sei lá,
em tudo o que fiz deixei um presente para a humanidade,
para que fizesse pulseiras e colares, e se enfeitassem para mais brilharem
– que era só o que eu queria, vê-los belos e felizes a se amarem –

mas não, tinham que ver tudo com cobiça, e arrancaram do seio da terra
coisas que lá ocultei, que nem eu imaginava para que serviriam,
e com elas cobriram-se de palácios, de vaidade sem medidas, e, pior ainda,
fizeram armas de guerra, e se matam, e destroem
tudo o que lhes cai na frente, por ganância pura,
por dinheiro – ah!, que raça maldita esse maldito povo eleito! –
e não há piedade com o irmão, o pobre, não existe amor,
e tudo o que resta de sua passagem por esse vale,
que, de jardim, tornou-se um gueto,
são pedaços de corpos, de homens, mulheres e crianças, sem vida,
sem sonhos, só fragmentos…”.

E com lágrimas nos olhos, disse ainda,
“E aqueles que escolhi, que deveriam ser os meus primeiros, debandaram
e se uniram ao seu único inimigo, por poder, pelo luxo, sempre – sempre! – pelo dinheiro,
e enganam os infelizes, com promessas que nunca fiz,
com palavras que eu nunca disse, com mentiras sobre mentiras,
com falsas doutrinas – e não é de hoje, não! –
e com isso desviam até mesmo os poucos que preparei
para que conduzissem os outros pelas veredas do amor,
da verdade, da esperança, e esmagam sua fé com mistificacões e lambanças,

sem se importar com o que lhes aconteça, se queimarão no futuro,
se ainda lhes restará aquela criança, que chamei para mim,
no tempo antigo, quando disse ‘vinde a mim os pequeninos’,
e caminham assim, todos, muito alegres, para o abismo.”

“De tudo o que dei ao homem, e o fiz à minha imagem,
o único que ele exerce, não a fé, o amor, a esperança, a caridade,
é o tal do arbítrio, e me parece que dele escolhe sempre
– porque pode – o caminho da maldade…
Afinal, que de bom fiz eu? Que me resta esperar daí?
Já não suporto vê-los assim, largados, bêbados,
enlouquecidos, com esses olhares esgazeados,
a cabeça cheia de falsos problemas, os corações cúpidos,
e o sexo, ah, o sexo, do qual fiz seu pequeno paraíso,
jogado na sarjeta para deleite e faturamento
do mais baixo proxenitismo.”

“E eu aqui, de mãos atadas, porque não tenho ação,
não posso fazer nada, eu lhes dei a liberdade de uma vez por todas,
para que não fossem máquinas, zumbis, marionetes,
mas para que completassem a obra que comecei,
e transformassem em Jardim pleno o que iniciei,
e que vivessem nesse mundo
como se fosse no Reino, e que tudo ficaria em paz, e a felicidade verdadeira
cobriria toda a criação,
espalhando-se por toda a parte, resgatando a criação
do primeiro dia até a hora derradeira”.

Levantou-se, deixou o jornal no banco, espreguiçou,
e deixou escapar um suspiro fundo, e saiu caminhando,
com um aceno, “Desculpe, filho, são ranzinguices de velho,
amanhã já estou melhor, afinal, ainda existem coisas belas,
e, como disse um poeta que eu gosto, vocês estão todos na sarjeta,
mas alguns ainda estão olhando as estrelas…”.

E, já se sumindo na distância, “E o homem interior,
tal como o criei, e o guardei no coração de todos?
Onde o colocaram? Por que se esqueceram dele?
Por que se esqueceram de mim? Que inferno!”


Tito Kehl é arquiteto, escritor e presbítero pela Ordem Hospitalar Sanjoanita. Autor de diversos livros, publicou em 2023 – pela editora Terra Redonda – o livro “Poemas ao Deus Desconhecido”. 

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