E volto ao começo onde tudo começa. Dentro. Fundo à beça. Depois, meço a letra, a palavra, o caminho. E recomeço. Escrevo sobre tempos idos, tão tempos e tão idos, que tão distantes e tristes. E sigo. Sigo na senda da escrita, vivenda esquisita em que vendo sentimentos e sentidos. O caminho é longo. Me perco em cada momento, em cada movimento lento da palavra. Mas vou lavrando a minha lavra. Falo sobre o que se achava passado, sobre o que parecia legado – quase esquecido – de um viver vivido errado. Ai, pecado! Desisto. Finjo que desprezo o que escrevo e o que sinto neste texto que teço e que se tece como uma crônica-labirinto.
E volto ao começo onde tudo começa. Dentro. Dentro. Fundo à beça. Depois, remeço. E recomeço. Caminho aberto ao infinito por onde a senda-palavra me leva quase aflito. Levo comigo também o desejo, sempre ele – labirinto dentro do labirinto que me tem e no qual me vejo. E escrevo. Que desejar é tanto. Segredo oculto, às vezes espanto. Que desejar é existir – e resistir. E desejo. E escrevo. Ai, querer. Querer o que se quer de qualquer jeito e em qualquer canto. E como revelar em público o que sinto e desejo aos prantos? Como não falsear o caminho? Como não mentir? Vejo outra porta, outro lado. Melhor desistir? Apago o quase escrito? Me inscrevo. Dou um passo atrás ao passo dado. Caminho errado? Minto. Retomo outra vez ao ponto de origem desta escrita-labirinto.
E volto ao começo onde tudo começa. À beça, à beça! Desejo fundo. Tão fundo! E refaço com a palavra um novo mundo. E o que sei eu dele? Recomeço. O que sei do mundo sem ter dado nele qualquer passo largo? Remeço o meu viver profundo. Tão raso. Pessoas em luta passam a noite cercadas por blindados em conflagrados países – e eu aqui, obeso, tecendo sentado as fibras das minhas raízes. Como escrever, em conforto, sobre essências quando muitos veem no sobreviver a só mais uma noite o motivo maior de existência? Rio da escrita que seca. Prendo-me à letra palavra-ariadne e insisto – rio da vida – e me prendo por um fio. Depois, desisto outra vez da tessitura. Cercado, espero notícias das guerras do outro lado.
E volto ao começo onde tudo começa. Minotauro, caminho palavra. E vou fundo, fundo à beça – e imagino-me um touro na cabeça. E me persigo. Touro de mim mesmo, amigo e inimigo. Então, escrevo. Passo a passo. Na altura dos olhos as paredes, acima dos olhos o espaço, o sonho, os astros. E a escritura me leva. Textura. Deliro a altura. Esqueço das guerras, dos tempos, dos desejos, dos amores, dos sentidos e tento num instante a inútil descrição de um sorriso distante (e que em si resumo tudo isso). O que posso fazer senão mais do que escrever meus ais, do que valorizar meus ais, do que valorizar-supervalozirar meus ais? Espero do mistério oculto os seus sinais. Mas nada. Nada mais. Ao fim da linha do texto o mundo acaba. Ao fim do mundo-texto é a vida que desaba. Porque não há sorriso ao fim da estrada. Pobre memória perdida, desavisada. Ai, como sinto! Sinto a rotina infinita desta construção-vida-labirinto.
E volto ao começo onde tudo começa. Fundo, mundo à beça. E meço a palavra. E recomeço. Finto a escrita, abro o ser e o foco na construção de parágrafos que podem se alternar de posição bloco a bloco. E daí? De que me vale a escrita, assim (de empreitada labiríntica) se dentro de mim labirinta-se o nada? Volto ao começo e me acho no fim – e num fragmento certeiro de um poema do mestre português Mário de Sá Carneiro. Porque, como o poeta, “perdi-me dentro de mim porque eu era labirinto, e hoje quando me sinto é com saudade de mim”.
Ai, labirinto meu! Ai, escrita-vida! Aqui estou eu, no ponto – enfim – onde tudo começa e tudo retorna ao fim.
Alexandre Bragion é editor do DE.
(Crônica também publicada nesta sexta (03/10) na coluna semanal “Porque amanhã é Sábado”, do matutino “A Tribuna Piracicabana”.

