A jardineira mal dobrara a esquina e o motorista despencara em berreiro.
– Caixão aqui num entra!
Mas no entre o berro e o pulo, caixão e carpinteiro se instalaram no carro. Surdos por conveniência, criador e criatura pipocavam como se o berro num fosse com eles. Em fuga de má sorte, o povo da jardineira tirava os olhos e se esgueirava em plena curiosidade – olhando sem querer olhar a caixa preta reluzida. O motorista entornou o freio. A jardineira sacolejou para adiante até parar de bico. Três meteram os chifres no tampo.
– Coisa de morto aqui não pode, moço! A freguesia tem medo.
– Mas Seu Oscar, não foi que a carroça emborcou justo hoje. Fiquei no sem nenhum. Compreenda. A família do que se foi é que está na espera. Tenha compaixão, homem… O caso nem é coisa de se ganhar dinheiro: é caridade. No mais, o homem já apitou mesmo – qual é o problema? Agora é só vestir o paletó de madeira e pronto. Num é pra causo nem susto.
– A freguesia tem medo, moço.
– Mas e o pobre que se finou, seu Oscar? Sem vida e sem campa. Dai descanso a quem merece, homem. Colabore. E olhe que bulir com essas coisas no prejudicado da hora pode trazer má sorte. Se eu fosse o senhor…
O homem ferveu a máquina – disparou:
– Aqui isso só viaja se for em cima, de telhado, escondido da freguesia. Que se o povo bate o olho no azar deitado nos bancos, não sobe que é nenhum.
– Mas seu Oscar…
– É pegar ou largar – que assim num dou arranco.
Tomando a fresca da tarde, lá se foram caixão e carpinteiro por cima do coletivo – batendo de ponto em ponto pela cidade. No miolo do carro, o povaréu foi se perdendo e se partindo pelo caminho, nas esquinas do estou em casa.
Então, foi quase no último ponto, quase na derradeira da entrega, que o que era um vento virou água: tempão de Deus me leve – que quem morre em dia de chuva vai direto pro céu. No teto da jardineira, fugido da noite mais preta, meteu-se o carpinteiro no caixão fechado, seguro do rio a rodo que caía. E lá ficou, seco e deitado, cansado do turno e da viagem, esquentando a cama para o falecido que viria depois.
E o depois logo se deu. De poça em poça, chegou a jardineira à sua parada final. Com ela se foi indo também a chuva, num finda não finda meio sem fim. Na esquina, a lua e a fila – comprida e magra no ponto de embarque à espera do carro, que dessa vez trazia no teto, para espanto dos que esperavam, um caixão de defunto.
No baque do freio, na parada, diante das gentes, o homem despertou das profundas do impossível. Num muque demais de repente, abriu ele por dentro o caixão diante dos olhos do povo.
– Cabô a chuva? – perguntou de cima.
Perereco! Bate perna que nunca se viu nem jamais se esqueceu.
No tempo…
E não foi que Seu Oscar perdeu o ponto e aposentou a jardineira de uma vez – que ninguém mais queria andar nela de novo.
Pobre seu Oscar…
O povo é por demais supersticioso.
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O autor:
Alê Bragion é músico e pesquisador dos estudos literários. Coordena também o Diário do Engenho.
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Muito criativo, Alê! E você tem um jeito gostoso de discorrer sobre os fatos aguçando a curiosidade do leitor. Bom feriado! abrs
Ivana Negri
Gostei muito, Alexandre! Tal como interpretar historicamente embasada a música de um determinado período, senti sua maneira historicamente embasada de escrever, adequando o estilo ao tempo da narrativa. Grande abraço a todos, sempre grato, PauloSouza
Delícia de texto Alê, bem do jeitinho de falá aqui do nosso povo, rs. Adorei!
Foi muito bom sorrir com suas palavras, nesse dia tão triste que lembramos dos finados.
Abração.
Oi Victor, Paulo Celso e Ivana!
Obrigado pelo carinho de vocês, valeu!
Em nome do Diário, agradeço também pela leitura e visita sempre constantes!
Abraços!
Alê Bragion
Além de ótimo contador de histórias oralmente — a deliciosa forma como, pela primeira vez, travei contato por ti deste causo da jardineira –, tens conseguido cada vez melhor levar isso para ‘contação’ escrita. Parabéns! E caixão por caixão: quando ganharemos para leitura aquela narrativa do caixão (com defunto!) carregado escada abaixo em um prédio aí em Pira? Abração!
Gostei muito, Alê. Muito bom! Beijos
Uma delícia ler seu texto! O jeito gostoso, a linguagem tipicamente interiorana…
Parabéns e obrigada por tamanho privilégio.
Um abraço.