Crônica-canção sobre 84

Crônica-canção sobre 84

Queria aqui a escrita como canto. Queria agora, neste momento, poder escrever uma crônica sonora feita toda de sentimento (e que me fosse possível imprimir nela – se eu soubesse – a doçura das canções que têm menos de canções e mais de prece). Sentado em frente ao meu computador, queria era poder compor um hino – um hino que fosse capaz de contar a aurora de outrora (feita de esperanças), que fosse capaz de enlevar lembranças, de resgatar a messe daqueles que, antes de mim, lutaram para que hoje eu pudesse – ou possa – escrever querendo unir almas e corações usando sons e palavras em liberdade e como quem tece.

Meu texto-melodia não traria disputa, apesar de que conteria a energia das músicas que me ensinaram o que era a luta. Menino que fui enquanto o amarelo de oitenta e quatro cobria de faixas as ruas, as casas, as janelas e os telhados – foi pela música que descobri que eu crescia num mundo estranhamente vigiado. Ai, momento! Ai, imagens que me vêm como vibração. Ai voz, que não tenho – mas ouço, ainda, no meu coração (de menino velho antecipado) a evocar em mim uma memória sonora (canora e límpida) que me vem de outro coração: o de estudante, de Milton Nascimento (esse deus-canção que se fez homem para melodiar o país em desejo de libertação).

Ai, hora! Ai, hora! Queria era escrever como quem canta, não como quem chora. Queria era poder criar uma palavra-música que soasse aos olhos e aos ouvidos – e falasse dos sons de tempos idos, sonora razão de existir de toda uma geração que cresci ouvindo. Queria era soltar a voz nas estradas, queria soar nos bailes da vida, guardando dentro do peito amigas e amigos antigos (aves que, à época, pela minha pouca idade, nem bem conheci – mas que sei que, em segredo, levavam no bico a esperança do canto que vencia o medo). Ai, seu eu pudesse! Se eu pudesse cantar, eu cantaria vocês e os guardaria para sempre no lado esquerdo do peito.

Tento, então. Me arrisco. Invento um canto. Mas nem de longe consigo expressar o que sinto quando alguém perto de mim – ou num disco esquecido – entoa o que um dia a minha infância ouviu: “São José da Costa Rica coração civil, me inspire no meu sonho de amor, Brasil…”. Ai, pranto. Ai, canto. Como cantar sem querer chorar? Pior! Como cantar sem lembrar o que vi e ouvi nesses quarenta anos que se passaram e trouxeram a este mundo afoito aquela criança que aos oito anos tentava entender um país que este ser de hoje ainda não entende mesmo aos quarenta e oito.

Desejo. Como desejo poder escrever tentando musicar e contar como todo um mapa sonoro que cantava o Brasil naquele momento se construiu e me construiu: dos showmícios em que a voz de Osmar Santos se misturava a de outros tantos, do rock que depois chegou – de “Que País é Este?” (da Legião Urbana), de “Inútil” (do Ultraje a Rigor) – aos “Podres Poderes” (de Caetano, gravado em maio de oitenta e quatro), reconheço que levei quarenta anos para aprender (de ouvido) que “Vai Passar”, do Chico (que quase me matei de tanto cantar), falava mais da emenda Dante de Oliveira do que do “samba popular”.

E não passou. Ou melhor, passou sem passar – no tempo – porque aqui chegamos e votamos. Cantemos! Ao que pese a voz embargada da escrita, ao que pese a sombra soturna de uma corja de golpistas a tentar a sorte e a quererem a todo custo trazer de volta uma ditadura composta dos sons de dor e de morte – cantemos. Cantemos porque somos feitos de canto – de um canto infinitamente poderoso e bonito. Cantemos, porque a “dura” odeia a beleza – feita da certeza de somos e podemos (sempre) mais.

Cantemos! Cantemos na escrita, pelo sonho, pelo ideal – como nos ensinou a canção. Afinal “se o poeta é o que sonha o que vai ser real, bom sonhar coisas boas que o homem faz, e esperar pelos frutos no quintal.”

 


Alexandre Bragion é editor do Diário do Engenho.

(Foto: Rio de Janeiro – O cantor Milton Nascimento no comício da Candelária – Vidal da Trindade/CPDoc JB).

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