“Eu quis comer esta ceia agora, pois vou morrer já chegou minha hora: Comei e tomei é meu corpo e meu sangue que dou, vivei no amor…”
A temática da corporeidade alcança especial significado no contemporâneo, particularmente dinamizado por uma série de prescrições e cuidados dietéticos e estéticos. Neste ambiente cultural, o corpo assume representações reducionistas e estigmatizadas. Almejando superar tais representações, vislumbramos, na festa de Corpus Christi, possibilidades que nos lançam para uma outra perspectiva sobre o corpo. De fato, a celebração do Corpo de Deus, dado em comunhão cósmica, em um ritual de características antropofágicas, resgata a beleza, a dignidade e a sacralidade da vida humana, que se manifesta nos corpos.
Celebrar a festa de Corpus Christi consiste em mergulhar na profundidade da manifestação do Mistério Divino. Na perspectiva cristã, o próprio Deus, em um singular e genuíno movimento de total despojamento, insere-se na história, assumindo plenamente a condição existencial humana, exceto no plano do pecado. A extrema beleza e o fascínio da celebração do Corpo de Cristo – ultrapassando em muito a tradição, profícua em seu conteúdo simbólico, de enfeitar as ruas com decorados tapetes – desvela-se na profundidade deste mistério.
Neste esteio de discernimento, alcançamos uma fundamental aproximação ao significado do mistério: ao assumir a vida humana – como Emanuel (Deus conosco) –, Deus se faz dom de si. Eis a mais sublime das dádivas que a humanidade, mesmo desprovida de mérito, poderia receber. De fato, o próprio Sagrado (que é Graça e Dom) se faz manifesto no mistério da encarnação, tornando-se o mais puro e elevado dom à humanidade. Celebrar Corpus Christi representa fazer memória da experiência fundante do próprio cristianismo.
Ao assumir a perspectiva humana da corporeidade, Deus imprime dignidade a todos os corpos. O corpo é dimensão fundamental da existência humana. Ele manifesta nossas sensações e sentimentos. Quando passamos por momentos de melancolia, o corpo reflete tal angustia, adoecendo – pois carrega as marcas de como vivemos. O respeito à integridade corporal denota o respeito à própria dignidade humana.
A sociedade contemporânea, ao produzir desigualdades, pode alimentar e gerar corpos magros, fragilizados e estigmatizados pela pobreza. Claramente, a desigualdade social constitui-se como uma afronta para a dignidade sagrada do corpo. Esta mesma sociedade idealiza como possibilidade de existência o consumo, banalizando-se as relações humanas. Como expressão deste movimento, criam-se padrões estéticos e de comportamento do corpo, não se experimentando a possibilidade da alteridade, a imprimir liberdade, autonomia e dignidade à existência corporal.
Nesta confluência, o corpo, parte fundamental da existência humana, manifesta a dimensão do sagrado. Celebrar, então, a festa de Corpus Christi é reconhecer a vida que se manifesta no corpo. O Corpo de Deus, ao se fazer dom, como refeição, alimenta perspectivas de vida – a partir da lógica da doação e da comunhão – à humanidade.
Adelino Francisco de Oliveira é doutor em Filosofia pela Universidade Católica de Braga/Portugal e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo.
belíssimo artigo! Somos corpo de Deus e nem sempre lembramos disso. Parabéns professor Adelino.
Parabéns Adelino! Lindo texto.
Olá caríssimo Raul,
É sempre bom vê-lo por esse espaço. O tema de Corpus Christi contempla uma bela dimensão simbólica.
Abraços,
Olá Dirley,
Agradeço pela leitura e interlocução. Diante de tantos corpos que sofrem, precisamos enfatizar a sacralidade do corpo. Abraços