O ano de 1984 começou e o fato mais importante para a minha vida naquela época era brincar com meu ferrorama que acabara de ganhar no Natal. Completei oito anos logo em janeiro e mal sabia eu que o Brasil daqueles dias girava bem mais acelerado do que meu trenzinho montado no chão do quarto, atração que tomava as minhas atenções e as de meu irmão, dois anos mais novo.
Das minhas memórias de infância, Piracicaba era também uma cidade ainda na espera de ciclos mais pujantes. Posso afirmar que a rotação lenta do meu ferrorama combinava com o dia a dia do município. Somado a esse panorama pacato, a política era algo que não influenciava o cotidiano da minha família, mas a minha avó paterna morava conosco e ela estava sempre ligada na televisão. Uma apaixonada por telenovelas, deixava a nossa “20 polegadas a cores” sempre falante na estante da sala.
E foi pela TV que uma nova emoção povoou nossa casa quarenta anos atrás. Sem me prender a dias ou meses, me lembro que 1984 foi o Ano das Diretas! Ou da campanha por eleições diretas, fato suspenso no país desde o início da década de 1960 e represado pelos milicos por mais de duas décadas.
Minha avó Nancy, então, acompanhava tudo: os comícios, os telejornais – e lia o Jornal de Piracicaba, que naquele tempo ainda repercutia de maneira incisiva na cena local e na casa dos piracicabanos. E da mesma maneira que vibrava com as telenovelas, minha avó-madrinha torceu pelas Diretas, se emocionou com o Osmar Santos e com a multidão no Vale do Anhangabaú, que se apertava na capital paulista, mas que cabia dentro da minha sala, dento da nossa “20 polegadas a cores”.
Do posicionamento simples de dona de casa da minha avó, eu ouvia expressões como “tem que mudar”, “vamos conseguir”, e eu ficava ali, como que um mini torcedor daqueles homens brancos que subiam no palanque e faziam a multidão vibrar com suas belas palavras de ordem. Havia o ápice, o hino nacional puxado pela cantora Fafá de Belém, que tirava lágrimas da minha avó Nancy. Era um nacionalismo simplista, um aperto que derramava sobre as bochechas fofas da minha avó, retrato de um povo que torce por si só, mesmo acostumado com as derrotas como naquele caso. A emenda das Diretas não passou, minha avó deve ter ficado triste como nas derrotas dos mocinhos nas telenovelas. Mais triste que isso foi que minha avó, falecida um ano depois, nunca mais votou para presidente.
Demoraríamos mais meia década para voltar a votar para o executivo. Mas cresceu ali parte do meu pertencimento cívico. Lembrei daqueles dias quando pude, enfim, votar pela primeira vez em 1992 (agora com 16 anos) e mesmo com meu candidato (José Machado) derrotado na eleição para prefeito, gostei de ficar na fila da seção eleitoral, de colocar o voto em papel na urna e até de pisar nas calçadas cobertas de santinhos até chegar ao local de votação. Enfim, com a lembrança da minha avó no peito, naquele ano eu participava pela primeira vez da festa da democracia. Minha avó já não estava mais conosco, mas deixou algo dentro de mim, assim como os discursos e o barulho todo que ecoava a partir da nossa “20 polegadas a cores” em 1984.
Caio Albuquerque é jornalista e mestre em Comunicação pela Universidade Estadual Paulista.
Comovente
Abraço!