Claro, é muito simples crer num Deus

Claro, é muito simples crer num Deus

Claro, é muito simples crer num Deus
tão fácil de descrer, e colocar nossa fé em algo intangível,
o Todo-Poderoso, o Criador do céu e da terra,
e outros títulos, todos absolutamente impossíveis de se levar a sério,
e que de modo algum impactam nossas vidas,
assim como a existência de anjos e demônios,
o Juízo Final e o Paraíso, e todas essas coisas

que o menor raciocínio lógico desmonta em questão de segundos,
e que fornecem todo tipo de munição aos descrentes,
que sorriem piedosamente de nossa ingenuidade,
de nossas crenças que se apoiam no nada,
dessas imagens absurdas com que vestimo-nos de padres
e madres do universo, baseando-nos em figuras de linguagem
de um pregador do ano trinta e três, que não deixou por escrito

sequer uma linha, e cujas palavras chegaram a nós
através de uma gente esquisita, que tinha numa das mãos a cruz
e na outra uma espada tinta de sangue,
que bebiam água benta no café da manhã
e comiam corações de mulheres e crianças ao meio-dia,
que pregavam o desprendimento, mas se vestiam de seda e cetim,
e moravam em palácios com jardins a perder de vista
e salas e corredores sem fim,

que falavam da moral mais comezinha, como se fosse o supra-sumo da experiência humana,
e prometiam o Reino além do cosmo a quem pagasse em dia
a propina, a esmola ou o óbolo,
concorda comigo?, é simples, cômodo e fácil,
e em nada nos compromete, principalmente se soubermos afivelar na cara
a expressão correta, de piedade, indignação ou o que seja,

que nos defina à perfeição, veja, ali vai um cristão,
veja como caminha em público, como se destaca
por seus modos, seus gestos, sua compaixão,
ah!, tudo isso é muito fácil, eu mesmo já tentei
e os resultados são ótimos, todos lhe respeitam,
e você leva sua vida num teatro, em que homens como nós
escreveram o argumento, e outros desempenham
os papéis principais, seja de apóstolos,
discípulos, do próprio Cristo, da Virgem
e, no limite, do próprio jumento.

Mas tente amar, ah!, tente apenas amar,
conforme disse o Nazareno, e traga para a realidade
do seu dia-a-dia esse Amor, que é divino, não terreno,
mas que é real, e nada há no mundo que o negue,
como são negados os sete dias, o dilúvio, Adão e Eva,
a serpente e Moisés abrindo o Nilo,

experimente trazer esse Amor para a sua vida,
tente, tente de verdade, não como disse o padre,
mas como anseia, dentro de você, seu próprio coração,
mas não, diante desse sentimento você é imediatamente tomado de terror,
porque a realidade de amar é tão real, tão impositiva,
tão transformadora e definitiva, que preferimos tudo,

até morrer, que seja, para não nos comprometermos com tal escolha,
que mudaria para sempre nossas vidas, que nos arrancaria
da comodidade dos pensamentos oníricos do inferno e do Paraíso,
dos anjos e demônios, com suas tentações, recompensas e sacrifícios,
ou das argumentações surrealistas a respeito dos céus, da criação, do fim do mundo,

e do porquê jogar água na cabeça de uma criança
haverá de salvá-la de um improvável pecado,
cometido por sabe-se lá quem, num tempo há muito passado,
anterior a tudo o que conhecemos, um tempo fora do próprio Big Bang,
na noite inescrutável do Princípio.

Tente amar, caramba!, não há outro céu, nem Deus, nem nada disso,
que não seja o Amor, pleno, total, sem preferência nem egoísmo,
um Amor que é a entrega incondicional à vida, que é eterno,
que move a humanidade, a terra e as estrelas,
que é escândalo para os judeus e loucura para os gregos,
e, de modo geral, uma coisa estranha para os homens,
sejam grandes ou pequenos, sábios ou ignorantes,

esse Amor que iguala a todos, porque todos lhe têm acesso,
e porque nada há de mais importante,
tente apenas amar, e jogue fora essa religião velha,
com suas velas gastas, o incenso embolorado, sem cheiro,
que já não envia aos céus as nossas almas,
jogue tudo fora, troque tudo por um só desejo,
de amar ao próximo, como a si mesmo, e a Deus, é claro,
porque Deus é Amor, disse João,
e isso é tudo o que temos para crer, e para ser,
porque isso é real, tremendamente real,
e é nisso que se resume todo o nosso ensejo.

 


Tito Kehl é arquiteto, escritor e presbítero pela Ordem Hospitalar Sanjoanita. Autor de diversos livros, publicou em 2023 – pela editora Terra Redonda – o livro “Poemas ao Deus Desconhecido”.

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