Quarentena tem dessas coisas, é preciso que se diga. A quarentena vem desafiando até aos que sempre se julgaram fortes. Ficar em casa, para a maioria, nunca foi tão difícil como neste ano. Sei de pais que nunca viram tanto seus filhos na vida como agora. A proximidade forçosa e o convívio obrigatório entre quatro paredes vêm despertando, também, sentimentos familiares até então camuflados e descortinando relações inesperadas. Tenho um amigo, por exemplo, que percebeu esta semana que o filho de dez anos já fala. Outro descobriu ontem que a filha tem uma namorada super bonita e muito bacana. Um colega professor, por sua vez, sugeriu aos alunos que filmassem os pais em casa e mandassem os vídeos para o sinistro da educação – ora, se o sinistro havia sugerido que os alunos filmassem aos professores e os denunciassem quando esses lhe provocassem o menor desconforto pedagógico a ferir a moral ilibada das famílias de bem, nada me parece mais justo – não é? E nada de se enervar com a prole, minha gente. Tenham fé!
Um dia a quarentena vai acabar e a vida de cada um poderá, quem sabe, voltar ser tão triste e solitária como era antes – desde que se mantenha assegurada a tranquilidade soberana das casas com a presença dos filhos na escola. Como não tenho filhos, minha solidão de quarentena é ainda maior. Por sorte minha e azar dela, eu e minha consorte (ou seria mais justo chamá-la, coitada – depois de me aguentar ao longo desses dois meses de claustro – de minha “sensorte”) vivemos nosso idílio lírico-religioso como dois abnegados ermitões. A quarentena tem dessas coisas – e a vida é difícil para quem ainda acha que a Terra é redonda e que a OMS não é uma organização comunista a serviço da China. Por isso, por ainda tenazmente acreditarmos na ciência, temos nos obrigado a ficar em casa com se fôssemos carmelitas descalças – trabalhando (porém de chinelos) horas a fio graças ao engenho tecnológico do mundo moderno que permite ao capitalismo sugar nosso sangue até o fim dos tempos. Aliás, nunca pensei que teríamos todos de trabalhar tanto mesmo ao sabor mais sublime do armagedom. Que fique sossegado o deus capital: pode a peste raivar lá fora que nós, a humanidade trabalhadora, honrada e honesta, morreremos passando nota fiscal de nossa mediocridade.
A bem dizer, em meio ao pandemônio, confesso que chorar tem sido uma constante após meses de reclusão – e tem gente que ainda acha que os detentos, nas cadeias, vivem numa boa e levam vida de privilegiados. Sinceramente, eu nunca imaginei que ficar em casa sem poder encontrar o mundo por aí me afetaria tanto. Comecei a perceber que me transformava num chorão num dia em que cruelmente deixei derramar um pouco de leite fervente sobre o fogão. Que cena comovedora. Assim que o leite saiu da panela e se derramou pela grelhinha do fogão me vi vertido em lágrimas como se estivesse assistindo o final de “A Dama das Camélias”. Chorei copiosamente por cinco minutos sem ao menos conseguir desligar o fogo – o que fez com que o resto do leite seguisse escorrendo da panela. Quarentena tem dessas coisas. Depois, chorei também de forma constrangedora quando o entregador de pizzas me disse que não havia trazido troco. Foi lindo. Nesse caso, todavia, percebi que o entregador também se comoveu – talvez ele também não andasse, como eu, saindo muito de casa ou tivesse apenas chorado comigo por piedade. Sóbrio e recomposto, no entanto, ele se despediu de mim jurando jamais esquecer o troco novamente – jamais! E partiu me devendo a enorme quantia de dois reais.
Por conta da quarentena, acho que o choro passou a ser contagiante também (seria um novo tipo de vírus?). Afirmo isso porque percebi que minha vizinha também começou a chorar por esses dias – pude acompanhar daqui de casa. Como ela está grávida, seu choro é ainda mais sentido do que o meu. Então, chorei ao ouvi-la chorando. Ela devia estar comovida com qualquer coisa de grande monta, algo como uma ligação do entregador de gás pedindo desculpas pelo atraso na entrega. Choro super justificável, compreendi logo. Por fim, quando o entregador chegou, comecei também a chorar de emoção e, se pudesse e se não fosse contra o isolamento, eu teria ido até a casa dela para abraçá-la e consolá-la, dizendo a ela que a vida é assim mesmo – e que uma hora o gás da gente acaba, mas que quando menos esperamos outro gás aparece de repente e as coisas voltam a ter chama de novo.
Quarentena tem dessas coisas. É preciso que se diga sem se envergonhar. Não bastassem as atrocidades que assolam o mundo e o Brasil – como o racismo, o fascismo, a misoginia, a insensibilidade e a idiotice dos desgovernantes, o ataque à democracia e a destruição do meio ambiente – agora choramos também pelo leite derramado e por estarmos, às vezes, sem gás. Paciência. Chorar faz parte. O bom é sabermos que uma hora ou outra tudo voltará, com choro ou sem choro, à anormalidade sublime de antes. Não, é? Diz que sim, senão eu choro.
Alê Bragion é editor do Diário do Engenho.
Muito bom Alê
Delícia de texto! Até consegui enxugar algumas das lágrimas que tenho vertido por esse desafortunado Brasil…