Vivemos a barbárie. E não há no uso dessa expressão qualquer traço de metáfora ou literatice. Na essência clássica do termo – tão bem já desenvolvido por filósofos e pensadores de outros tempos, como Adorno, por exemplo – vivemos na pele, agora, a nova versão brasileira desse conceito que define um estado de acontecimentos impositivos e de exceção que contradizem e ferem de morte, em suma, o que resta de digno e humano na sociedade. Ou seja, barbárie é antônimo de civilização – e o que se concretiza hoje, no país, é pouca coisa para além disso.
A classe média urbana e medíocre pode até achar o termo exagerado – se comparado a barbáries como a do holocausto judeu, por exemplo. Mas para quem vive nas comunidades carentes, para quem morre dentro de casa aos 14 anos de idade assassinado com um tiro de fuzil dado pela polícia em mais uma ação diabólica contra a vida de negros e pobres, não há qualquer exagero no termo. Quando sabemos que o país volta suas costas para os mais de 20 mil mortos vitimados por uma epidemia que colocou o mundo de joelhos, temos de reconhecer a nossa incivilidade, a nossa indignidade, a nossa decrepitude enquanto nação.
Sabemos que estamos vivendo a barbárie quando vemos que aqueles que deveriam conduzir a nação com lealdade, sabedoria, humanidade, consciência e amor são peças de uma engrenagem demoníaca, baixa, escrota, mal-educada, violenta, bandida, incompetente, golpista e cruel. Sabemo-nos em plena barbárie quando os pseudos-líderes da pátria, em plena pandemia, tripudiam dos mortos e se preocupam apenas em vender a pátria, em lotear nosso meio ambiente, em destruir nossos bens naturais maiores favorecendo o extermínio de povos indígenas e de outras comunidades com a mesma sensibilidade de quem coloca veneno para acabar com formigas.
Já vimos de tudo desde que aquele de quem não se deve dizer o nome assumiu. Já vimos apologias ao mal de todas as ordens – desde ameaças concretas de golpe militar a ministros nazistas teatralizando cenas vomitórias que remetem a vermes do passado. Já vimos evangélicos, católicos e outros ditos “cristãos” apoiando o mal e fazendo sinal de arma com os dedos. Já vimos de tudo. Ontem, sexta-feira triste (22 de maio de 2020), fomos violentados mais uma vez, agora com a exibição da mais grotesca e abjeta reunião ministerial que já se deu desde a redemocratização. Novidades? Nenhuma. Apenas mais do mesmo lixo. Apenas um aroma mais forte das fezes em que estamos morrendo sufocados.
Nada, no entanto, parece mais bárbaro e ordinário a este Diário – e àqueles que há quase dez anos colaboram para sua existência e aos quais este editorial, como texto institucional, representa – do que saber que parcela significativa de nossa sociedade se compraz diante do mal que são as hostes infernais do bolsonarismo – que nos humilha aos olhos do mundo. Nossa barbárie – assim como outras já ocorridas por aqui, como a que se viveu na ditadura, por exemplo – é reduto social, é institucionalizada e aplaudida por brasileiros tão maus quanto aqueles que eles elegeram. Nossa barbárie é doença moral coletiva. Nossa barbárie agrada grande parte de nosso povo, explicitando e desnudando melancolicamente uma imensa parcela imbecilizada de nossa gente – uma imensa parcela que, mais do que ignorante, é simplesmente má, egoísta e sem caráter.
Nossa barbárie, por fim, e como acontece em estados assolados pela barbárie, vem exterminando a política. E que fique sempre claro, todavia, que não se trata mais, agora, de sinalizarmos aqui as pautas políticas que orientam este Diário. Quando afirmamos que a barbárie vem pondo fim à política o fazemos porque entendemos que as disputas políticas e os debates de uma chamada polarização entre direita e esquerda morreram há muito, foram assassinadas nas últimas eleições. E lamentamos perceber agora, no estado de barbárie a que chegamos, que qualquer um dos candidatos que em 2018 concorreram à presidência teria sido infinitamente melhor do que o que aí está. Havia opções, e variadas (à direita e à esquerda), mas a população brasileira optou pela barbárie.
O que agora está posto ao país, portanto, não é mais apenas uma questão de posicionamento político, mas é – sim – uma questão de humanidade ou de falta dela, é questão de caráter ou de falta dele. Por isso, aos que ainda acreditam no humano – apesar de tudo – ainda cabe lutar e resistir. Lutar e resistir, sempre – mesmo em meio à barbárie e conscientes dela – unindo forças independentemente do colorido político-partidário que melhor nos agrada. É preciso vencer o mal, é preciso por fim à barbárie. Ou nos unimos em prol de um bem-maior, ou nos unimos na busca de um resgate civilizacional – o que parece ser a nossa única opção neste momento – ou sucumbiremos breve e definitivamente debaixo de botas sujas de sangue e lama.
Diário do Engenho.