O tempo do Natal e a vigília na expectativa de um novo ano são eventos que guardam um profundo sentido, sobretudo, simbólico, capaz de calar profundamente cada singular existência. Período propício para se perspectivar a vida, vislumbrando talvez experimentar outros caminhos e novas possibilidades existenciais. A esperança de recomeços, de horizontes ampliados, de um tempo diverso tomado por uma felicidade idílica pode conceder à existência um revigorado elam.
A lógica da mercantilização procura se apropriar desses eventos, reduzindo as relações a um mero aspecto comercial, esvaziando qualquer sentido mais profundo e simbólico. A objetividade míope do mercado, a transformar tudo em mercadoria e capital, pode aprofundar a ferida nefasta que cinde o humano, impossibilitando vivências tão importantes e genuínas de reencontro e comunhão. A dinâmica do mercado, incapaz de enxergar para além do lucro e acumulação, busca obscurecer tais eventos, reificando o humano, mantendo-o em uma constante situação de opressão, exploração e alienação. Fazer frente a essa redução e a esse estado de coisas configura-se como tarefa imprescindível e urgente. O que se coloca em questão é a própria noção de humanidade, de civilização. Nesse ponto, as celebrações de final de ano se projetam no fio da navalha, no equilíbrio entre os ditames reducionistas do mercado e os anseios humanos mais autênticos.
É evidente a dimensão religiosa, a revestir e permear esses derradeiros suspiros do ano. A perspectiva de Deus assumindo, na própria história, a condição humana é impactante e incompreensível para muitas crenças – para o judaísmo tal ideia chega a ser até escandalosa. Mas mesmo o indivíduo mais fechado em suas convicções materialistas acaba por ser tocado por tais eventos. A força do relato da encarnação divina, o nascimento de Emanuel (Deus conosco) é realmente comovente, inclusive para os corações mais empedernidos. Cada detalhe na narrativa exemplar da natividade de Jesus contempla, teologicamente, ensinamentos essenciais, a definirem e apontarem o que deve alcançar relevância existencial.
A profundidade teológica possibilita então acessar perspectivas psicológicas, fazendo eco no que há de mais interior no humano. Os rituais de final de ano contemplam ainda uma função terapêutica, no sentido de restaurar e recompor os fragmentos de uma integridade ferida. As celebrações litúrgicas, os encontros familiares em torno da mesa, a troca de presentes, a gestualidade de abraços e sorrisos, as memórias resgatadas nas longas conversas, recriam um ambiente primordial que convida à reconciliação, de maneira a suplantar o mal estar de ressentimentos.
No transcurso de um ano particularmente difícil, marcado por tantas perdas e derrotas no campo político e no âmbito dos direitos, as celebrações de final de ano podem ganhar uma dimensão ainda mais fundamental. O cerne desse desafio colossal talvez esteja na busca por mecanismos internos e externos de manutenção da esperança. Como não sucumbir, internamente, mantendo a integridade inclusive mental, diante da proliferação de discursos neofascistas, marcados por ódio e insensibilidade social? Como fomentar a resistência e a perseverança na luta em um contexto de desarticulação e desmobilização sociais? O cenário político geral pode sedimentar desânimo e desistência, renunciando a qualquer perspectiva de esperança.
A dureza de um violento golpe desferido contra os princípios de democracia, de direito, de justiça e equidade sociais pode fazer esmorecer os combatentes mais determinados. Não viceja entre nós estoicos, mas apenas homens, inclusive fragilizados por uma guerra suja, dissimulada e desleal. As diabólicas e malignas potestades da morte, a proclamarem a triunfal vitória do modelo econômico neoliberal – na dinâmica competitiva do cada um por si e do todos contra todos –, podem impactar terrivelmente, lançando golpes fatais nas múltiplas formas de contraponto. Dissemina-se, ideologicamente, a noção de que a economia deve ser livre e regulada exclusivamente pelo mercado. Desmontam-se os sistemas de previdência e seguridade sociais, lançando-se os pobres, os mais vulneráveis socialmente, ao total abandono. Mais que isso, em uma compreensão desprovida de uma mínima criticidade histórica, culpabiliza-se o pobre por sua condição, ao mesmo tempo em que se criminaliza a pobreza. Qualquer oposição passa a ser minada, por meio de exposições midiáticas difamatórias e não verdades, arrefecendo disposições de resistência. Paira, então, um forte sentimento de trágica derrota, de que a luta será em vão.
Mas se os eventos de final de ano, particularmente as celebrações em torno do Natal, devem alcançar o humano em sua singularidade interior, em um processual movimento de individuação – na expressão de Carl Gustav Jung –, também podem alcançá-lo no plano sociopolítico, revigorando utopias. As representações éticas, em âmbito subjetivo, reverberam e projetam-se para a esfera política, demarcando outras possibilidades de organização da vida na coletividade. O projeto de uma sociedade fundada no direito e na justiça encontra guarida nas concepções e leituras teológicas, nas simbologias religiosas e psíquicas, a fortalecerem anseios e apontarem caminhos de libertação.
As experiências celebrativas, a ganharem espaço nos diversos rituais de final de ano – quando não totalmente sucumbidas pelo reducionismo mercadológico –, cumprem, sobretudo, a função de reativar as esperanças na humanidade, recolocando o ideário de um mundo em comunhão, a reafirmar como princípios basilares a solidariedade e a justiça. O projeto de um mundo para todos, a suplantar formas arraigadas de opressão e exploração, emerge como inspiração e horizonte. A história ainda não chegou ao seu ocaso. A humanidade é capaz de se reinventar, a partir de outras bases éticas e políticas, tendo a defesa da vida, toda vida, como paradigma existencial e critério central de organização e decisão. Um outro mundo, uma sociedade diversa, dinamizada a partir de uma outra política e de uma nova economia é possível e viável. Um mundo que se expande em encontros, pautados em tolerância e convivência na diversidade, no reconhecimento do outro como extensão necessária. Que os eventos celebrativos que tomam o final de ano se constituam, então, como espaços de afirmação das forças reativas da existência, repensando o humano em suas relações e recriando novas utopias sociais. Oxalá tais anseios sejam o espírito desse Natal.
Adelino Francisco de Oliveira é doutor em filosofia pela Universidade Católica de Braga – Portugal – e professor do Instituto Federal (IFSP) campus Piracicaba.
Fico muito, mas muito feliz em ser lembrada , com um conteúdo dessa importância, parabéns e também em ter conhecido um doutor igual ao senhor. Parabéns Adelino
Parabenizo Adelino por nutrir nosso “esperançar” !
Seu texto nos inflama. Que sigamos inflamados diante das doenças do nosso tempo.