Dr. Jean Goldenbaum, compositor e musicólogo, é professor e pesquisador do ‘Centro Europeu de Música Judaica’ da ‘Universidade de Música, Teatro e Mídia de Hannover’, na Alemanha. Para uma reunião ocorrida neste Centro em 9.10.2018, Jean preparou a seguinte carta que segue e que o Diário do Engenho, que pactua com a luta pela Democracia em oposição à barbárie, a seguir publica:
Carta aberta a ser lida na reunião do Centro Europeu de Música Judaica (Universidade de Música, Teatro e Mídia de Hannover, Alemanha) em 9 de outubro de 2018.
– por Jean Goldenbaum
Com enorme tristeza sento para escrever estas linhas. O que preciso comunicar e hoje deixar aqui registrado não é de tema exclusivamente musical ou judaico, mas é de importância universal. Enquanto artista e pensador contemporâneo, não posso deixar de trazer a realidade que vivemos ao local onde trabalho, o ‘Centro Europeu de Música Judaica’, que deve ser, antes de mais nada, um local de reflexão, diálogo e busca pela verdade. Esta minha ação se faz ainda mais necessária, pelo fato de que as notícias do resto do mundo praticamente inexistem na Europa. O Eurocentrismo e a falta de interesse pelo externo faz com que até mesmo situações mais emergenciais passem quase despercebidas.
Há meses estamos vivendo no Brasil, país onde nasci e cresci, um pesadelo. Um candidato presidencial nazifascista, um ex-militar que se fez político, ascendeu como “o salvador da pátria para todos os problemas da população” e rapidamente arrebanhou dezenas de milhões de votantes. Seu discurso é o mais puro e claro discurso hitlerista. Ele baseia-se na falsa ideia de uma moral cristã que salvará o Brasil de todos os valores negativos que o ameaçam: a homossexualidade destruindo a “família”, o comunismo destruindo a política, o feminismo destruindo a sociedade. Para que tenham uma ideia da gravidade da situação que vivemos, segue uma lista das barbaridades que este monstruoso candidato claramente já falou. Inclusive, vale mencionar que seu slogan, ‘Brasil acima de tudo’, é simplesmente a tradução literal para o português de ‘Deutschland über alles’. Vamos às suas citações:
Sobre a horrenda ditadura militar no Brasil de 1964 a 1985:
“Me desculpa, através do voto, ‘cê’ não vai mudar nada nesse país. Nada, absolutamente nada. ‘Cê’ só vai mudar quando infelizmente partirmos para uma guerra civil aqui dentro e fazendo um trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil pelo menos. Contando com o FHC. Não vai deixar passar nada não. Se vai morrer uns inocentes, tudo bem. Tudo quanto é guerra morre uns inocentes.”
“O erro da ditadura foi torturar e não matar.”
Sobre as mulheres:
À deputada que o acusou de fazer apologia ao estupro: “Olha, jamais iria estuprar você, porque você não merece.”
“Tenho quatro filhos homens. Na quinta eu dei uma fraquejada, veio mulher.”
Sobre o salário das mulheres, com relação ao dos homens: “Eu não empregaria com o mesmo salário.”
Sobre os homossexuais:
“O filho começa a ficar assim, meio gayzinho, leva um couro, ele muda o comportamento dele.”
“Eu seria incapaz de amar um filho homossexual. Não vou dar uma de hipócrita aqui Prefiro que um filho meu morra em um acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim, ele vai ter morrido mesmo”
“Se um casal homossexual vier morar do meu lado, isto vai desvalorizar a minha casa.”
Sobre os negros:
Ao ser perguntado por Preta Gil se aceitaria que um filho seu se apaixonasse por uma mulher negra: “Olha, Preta, eu não vou discutir promiscuidade com quem quer que seja. Eu não corro esse risco, porque meus filhos foram muito bem educados e não viveram em ambiente como, lamentavelmente, é o seu.
Sobre o pouco que sobrou de terra aos índios no Brasil:
“Se eu assumir como presidente da república, não haverá um centímetro a mais para demarcação.”
Sobre o MST e os refugiados que chegaram no Brasil:
“Caso venham reduzir o efetivo, é menos gente nas ruas para fazer frente aos marginais do MST, dos haitianos, senegalêses, bolivianos e tudo o que é a escória do mundo. E agora estão chegando os sírios também. A escória do mundo está chegando ao Brasil.”
Todas estas citações ocorreram em entrevistas. Todas estas estão disponíveis na internet, em forma de vídeo ou texto. E ainda há muitas outras.
Esta é a situação no Brasil hoje: as pessoas más se excitam com a violência, com a possibilidade de possuírem um passe livre para destilarem seu ódio e sua agressividade. (Inclusive, logicamente o candidato é também a favor da liberação das armas de fogo na sociedade.)
Multidões começaram a segui-lo e, assim, a ignorância de um povo sem educação misturou-se com a maldade humana e tudo começou a escalar. Por um lado é semelhante ao terror trazido pelo também monstruoso presidente nos EUA (que, por sua vez, acaba de defender o ingresso de um estuprador na Suprema Corte norte-americana), mas amplificado imensamente, trazendo de fato a realidade do nazismo de volta, aos dias de hoje.
Muito tristemente, uma das maiores bases de eleitores deste candidato é a comunidade cristã evangélica. Um amigo meu, teólogo cristão, me disse que é deprimente ver como a evangelização no Brasil tomou o lado oposto que deveria, deixando o Amor e escolhendo o Ódio. Eu, pessoalmente, não sou cristão, mas sei que o que Jesus pregava é o oposto dos valores nazifascistas que estes evangélicos hoje aplaudem.
No meio de todo este horror, algo bom mostrou-se: diferentemente da Alemanha nos anos de 1930, onde a resistência foi mínima e a maioria absoluta do povo abraçou o nazismo – Stefan Zweig escreveu em 1933: “Na Alemanha somente os judeus (fora algumas raras exceções) são pela liberdade e pela independência. O verdadeiro alemão deseja obedecer ou comandar.” -, no Brasil praticamente metade do povo passou a lutar contra o terror. Milhões de brasileiros protestaram ao redor do mundo em um lindo movimento emcabeçado pelas mulheres. Alguns artistas (ainda que não tantos como deveria ser) se posicionaram corajosamente. Milhões de posts e hashtags nas redes sociais fizeram seus papéis no mundo digital em que vivemos. Mas isto é suficiente para batermos o Mal?
Acredito que devo falar a vocês de minha participação pessoal no movimento de resistência ao nazifascismo, ao qual tenho me dedicado todos os dias de minha vida nos últimos meses.
Eu e meus amigos artistas fundamos um grupo de arte e pensamento, chamado ‘Grupo dos Cêis’ (nome que em um dialeto brasileiro significa algo como “Grupo para vocês”, ou seja, para o povo e as pessoas que também lutam esta causa). Este grupo integra sete artistas, professores, intelectuais que se propõem a utilizar a arte como arma contra o nazifascismo e a favor da Liberdade, do Respeito ao Próximo e da Tolerância. Compus especialmente para esta ocasião uma peça para violino e viola chamada ‘Dizemos NÃO ao Fascismo no Brasil’, que foi apresentada nos dois bem sucedidos eventos que realizamos nos últimos meses. Como era de se esperar quando se luta contra pessoas violentas, logicamente sofremos agressões por escrito e diversas ameaças por parte dos fascistas. É assustador e sim, temos medo. Mas temos um ideal e seguiremos em frente até o fim.
Eu, enquanto judeu, participo também do maravilhoso movimento judaico de resistência ao nazifascismo. Esta luta é ainda mais complexa, pois além de combatermos os fascistas, temos de combater também a barulhenta parte dos judeus fascistas, que apoiam o candidato em questão. Sim, ele se utiliza da já conhecida estratégia barata do neonazifascismo do século XXI (como o AfD também o faz): colocar-se como amigo de Israel, canalizando a princípio o ódio a outros povos, culturas, gêneros. Logicamente o candidato e todo seu movimento é altamente antissemita, mas, assim como os judeus que votaram em Hitler, os que hoje no Brasil o apoiam são maus e/ou estúpidos o suficiente para não compreenderem isto. Enfim, ao longo destes meses fui então também agredido e ofendido por ser judeu, algo para o qual todo judeu já está preparado, mas que não deixa de doer. “Judeu sujo, comunista de merda, você vai ver o que vai acontecer.”, escreveram publicamente em minha página de rede social.
E isto é só um exemplo das agressões que a resistência vem passando. Professores já foram agredidos em salas de aula, homossexuais espancados em plena luz do dia, e uma das ativistas de direitos humanos mais importantes do país, uma muito corajosa mulher (inclusive negra e homossexual), foi assassinada e o caso foi encerrado sem propícia investigação e, logicamente, sem punição alguma a quem possa ter cometido o crime. Que ela descanse em paz.
E assim chegamos hoje próximos ao ponto final que mais temíamos. Ontem ocorreu no Brasil a primeira fase das eleições. O candidato nazifascista atingiu 46% dos votos, ficando à frente do candidato de resistência, que obteve somente 25%. Estes dois candidatos disputarão a presidência na segunda e última fase das eleições, em 28 de outubro. Mas a vitória nazifascista é praticamente certa.
Sobre a demografia da votação: a maioria absoluta dos ricos votou no nazista. Os pobres se dividiram. Os que o apoiam pensam ingenuamente que ele governará para eles, mas para quem compreende a história do mundo, do fascismo, dos regimes totalitários e dos discursos populistas, isto é obviamente uma completa inverdade.
No meio desta tragédia toda, algo bonito ocorreu nesta votação: a única das cinco regiões brasileiras em que o candidato nazifascista foi derrotado, foi a região mais pobre do país, o Nordeste. Sim, o pobre tenta salvar o Brasil. Mas isto é suficiente para batermos o Mal?
A mídia mainstream, controlada pelos bilionários do país, como era de se esperar, joga de acordo com seus insteresses políticos e econômicos: mente, distorce os fatos, cria meias-verdades e assim colabora com a morte da democracia.
As pessoas de Bem estão em pânico, os maus se deliciam e fazem com as mãos o sinal da arma de fogo, o ensinando também aos seus filhos.
Um amigo do grupo dos judeus postou uma foto de um eleitor que foi votar com uma camiseta com a estampa da águia com a cruz suástica. Em plena luz do dia. Este é o nível que chegamos.
Aparentemente, neste momento nada mais é suficiente para batermos o Mal.
Meus amigos e outros milhares de intelectuais e artistas já estão se preparando para o que deve vir. Já planejam deixar o Brasil em exílio. Minha esposa e eu abriremos nosso pequeno apartamento em Hannover a quem precisar de abrigo. Europa, outros países da América Latina, e Israel para os judeus, serão opções para os exilados. No Brasil ficarão somente os que amam a opressão e abominam a Liberdade. E assim, grande parte da cultura e da identidade do povo se perderá, como ocorreu na Alemanha.
Enfim, era isto o que eu gostaria de deixar registrado nesta reunião. É um momento sombrio da humanidade em todo o planeta e o Brasil parece ter levado toda a negatividade ao ápice. Eu sou neto de judeus que fugiram da Alemanha nazista e foram recebidos de braços abertos no Brasil, um país da Liberdade e da Tolerância, que eles aprenderam a amar e faleceram idosos amando. Eu nunca pensei que vivenciaria uma realidade assim, mas estou vivenciando. E escolho lutar, pois amo a Liberdade, o Respeito, a Democracia. Em dezembro terei de ir ao Brasil e não sei o que me espera. Estarei correndo perigo de morte? Pode ser que sim. Dizem que já há listas com nomes de artistas e intelectuais que se opuseram aos nazifascismo durante todo o processo eleitoral e sei que meu nome pode estar presente. E por mais assustador que isto seja, é também é uma honra, pois aqueles que amam o Bem não se calam diante do terror que pode vir a custar a Liberdade, a Dignidade e até mesmo a Vida de outros seres humanos.
Jean Goldenbaum
Hannover, 08.10.2018
É isso que as eleições no segundo turno sejam melhor analisadas para que possamos continuar vivendo a democracia.