Cadê o Deus que se esvai por entre os dedos?

Cadê o Deus que se esvai por entre os dedos?

Não, eu não acredito, nem por um segundo,
nesse Deus que vocês tagarelam todo o tempo,
explicando-o como se houvesse nisso qualquer novidade,
que fosse a mínima coisa, que nos estarrecesse,
e nos deixasse sem palavras, a pensar ideias sem formas,
e a prostrarmo-nos, vencidos, diante do inefável,

mas não, tudo o que vocês dizem não passa de almanaque barato,
comprado no camelô por dez réis de mel coado,
não vale um pequi chupado, mesmo que lhe mudem a barba,
a cabeleira branca, o ar severo, o dedo apontado,

mas – cadê o mistério, o indizível, o abstrato,
o que destrói nossas muralhas, e faz nossas armaduras mentais em pedaços,
cadê o silêncio que se agiganta na noite,
quando termina a sinfonia dos sapos, e apenas voejam os morcegos,
com seus gritos inaudíveis de fantasmas, cadê o Deus

que se esvai por entre os dedos, que não se deixa pegar,
que diz, ainda não fui para o Pai, e ficamos ali,
a olhar o jardineiro, pasmos, a repetir “Raboni”,
e não nos ocorre mais do que essa palavra,

uma só, e rasguem-se todos os livros, e morram na boca
as sentenças mais sábias, e calem-se os filósofos,
os professores e os didatas,
e falem somente os tolos, com suas línguas enroladas,
e seus olhos de espanto, postados no rosto

do Deus invisível e mudo, esse que é tudo,
e cuja verdadeira face, para os que o querem ver,
é o nada.

 


Tito Kehl é arquiteto, escritor e presbítero pela Ordem Hospitalar Sanjoanita. Autor de diversos livros, publicou em 2023 – pela editora Terra Redonda – o livro “Poemas ao Deus Desconhecido”. 

 

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